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Falta crônica

Normalmente uma crônica nasce de duas maneiras, nenhuma delas saudável: a estrita falta de tempo ou a inesgotável capacidade de adiar. Ou ambas, a depender do cenário. Agora, por exemplo. Tenho apenas meia hora pra começar a escrever seja o que for. Mastigo algumas ideias, nenhuma tão boa de que não possa me livrar, nenhuma totalmente descartável a ponto de me dar ao luxo de abrir mão e procurar outra. Como típico geminiano, perambulo nesse vale de charco entre os farrapos de pensamentos sem me decidir se falo sobre esse programa governamental que taxa as grandes pobrezas ou sobre o calor que recobre a cidade como se Fortaleza fosse uma casa de apenas dois cômodos que houvesse recebido essa borrifada de fumaça quente de um antigo carro da Sucam. Aflito porque já não disponho de tanto tempo assim, começo então um parágrafo sobre a uberização da vida, mas logo passo a outra ideia (a persistência do Kukukaya como opção de lazer), largando pra trás a crônica já iniciada para aprov...

Seja luz

Foi só depois que um amigo se despediu falando “seja luz” que eu me perguntei se estava sendo luz o suficiente, ou seja, se estava iluminando as pessoas do meu convívio feito um desses postes da avenida Perimetral que esbanjam um halo amarelado sobre as vastas porções de terrenos baldios. Ou se, pelo contrário, eu era uma lâmpada queimada ou funcionando precariamente que deixava os outros às escuras, projetando sombras contra as paredes como aqueles enfurnados na caverna platônica. Então entendi que temos hoje como que uma fixação por luminosidade e transparência, duas coisas que parecem positivas à primeira vista e muito bonitas de serem ditas, mas são no fim das contas coercitivas. Isso mesmo. A exigência de que sejamos “luz” o tempo inteiro embute o desejo de banhar cada pedaço do corpo e do juízo, devassando os espaços de intimidade e afastando a obscuridade. O escuro é o confuso e o não-conhecido. Por trás dessa mania, eu desconfio de que exista um desejo de domínio do...

Aterrando o aterro

Gosto dessa ideia de aterrar o aterro da praia de Iracema. Me faz lembrar dos heróis que vestem a sunga por cima da calça. Não fosse uma obra de engenharia civil, poderia estar exposta na Bienal de Veneza – camadas e mais camadas de areia sobre a areia, a metáfora viva da ruína urbana e da insistência no sem-jeito. É algo que talvez Juraci fizesse se fosse vivo e prefeito da cidade. Visionário que era, o velho entendia de arte. Vejam suas paradas de ônibus monolíticas adornadas com o slogan “Humanização com participação”, até hoje resistentes a sol e chuva, diferentes dos abrigos metálicos magricelas e insuficientes onde mal se acomodam cinco pessoas mais quartudas à espera de um ônibus que aceite dinheiro – outra marmota que o Juça não haveria de permitir. Mas voltemos ao aterro aterrado, uma gambiarra urbanística que vai passando como solução inteligente para os problemas da orla, como lembrou um amigo mais exaltado dia desses. Feito quase tudo que é genuinamente cearense, ca...

Pessoas instagramáveis

Quão instagramável você é no seu dia a dia?   A dúvida bateu a caminho da padaria. Notei que usava uma camisa fubá, de pouco aprumo estético, com a gola um tantinho foló, e calçava um par de Havaianas de 2015, quando deixei de lado as anteriores porque o cabresto tinha arrebentado. A bermuda não era do tipo cargo, mas uma lisa azul-marinho repleta de pelos do gato. Tampouco a padaria era instagramável, não havendo nela sequer uma parede com asas de anjo desenhada em cores berrantes diante da qual eu pudesse registrar o momento histórico em que, mal-vestido e mal-humorado às 8 horas da manhã, me punha a comprar seis pães (três carioquinhas e três massa-fina, o velho sovado) e uma caixa de leite sem lactose. Meditabundo diante dessas limitações do meu cotidiano tão rés do chão e sem qualquer direção de arte, passei no caixa para pagar. Um desses caixas comuns, com uma esteira metálica rolante na qual a mercadoria desliza preguiçosamente, e um funcionário igualmente comum qu...

Pois bem

Das expressões de fala corrente, dessas que usamos sem ver nem pra quê, feito uma peça de roupa mais querida de que nos servimos no dia a dia, uma das que mais gosto é “pois bem”, que empregarei sem aspas de agora em diante, como se tirasse a chinela antes de entrar na casa alheia.  Pois bem, explico por quê. É uma marca forte de oralidade, de história que se conta e cujo fio da meada não se perde nunca. Pois bem. Quem faz uso dela tem sempre em mente que o outro dispõe de pelo menos meia hora para ouvi-lo. Pois bem. Logo, está-se diante de interlocutor que acompanha tudo, detalhe por detalhe, e cada lance se lhe afigura como uma novela radiofônica, com os personagens se alternando e suas ações lentamente convergindo para um clímax que ainda não se sabe qual é, mas cujo véu vai se descobrindo a pouco e pouco. Pois bem. Quando se topa com isso, o ouvinte sabe que não é historinha ligeira, que se narre em dois minutos sem recorrer ao cacoete linguístico, que tem a função aí de pedi...

Pedindo Anitta

Acordei mais cedo do que de costume e, ao deixar minha filha na escola, ouvi um popular falar baixinho, a voz engrolada de quem se acha ainda sonolento. Cheguei mais perto, pus a mão em concha pra abafar o ruído dos carros. E era isso mesmo. Às 7h50 da manhã de uma terça-feira de outubro de 2019, aquele brasileiro estava pedindo a Anitta. Pedia muito, na verdade. Embora com discrição, sons e gestos faziam crer que pedir a Anitta era necessidade básica, questão humanitária até, mais importante do que o café com pão do desjejum. Quis ajudá-lo, mas não sabia como. O homem explicou que, desde o sábado passado, não sabia pronunciar outras palavras além daquelas. Queria a Anitta, urgentemente. Meu senhor, o Brasil inteiro quer, brinquei. Ele ficou sério. Como me afastasse, agarrou meu braço e sibilou: você tem de pedir Anitta. Fui embora encafifado. Meia hora depois, meu telefone toca. Era o pai. Ficou calado uns dez segundos antes de começar a conversa, que se resumia a uma única senten...

Como fazer amigos e cancelar pessoas

Para cancelar uma pessoa porque discorda de suas opiniões políticas, manifestadas nas redes sociais ou no dia a dia, e das quais você diverge ideologicamente e portanto não as suporta, digite 1. Para cancelar alguém com quem está alinhado politicamente mas de quem antipatiza por razões que extrapolam o campo da esfera pública e encontram expressão mais precisa em impasses de natureza afetiva, embora isso seja apenas especulação, disque 2. Para cancelar outrem que se enquadra ao mesmo tempo nos itens 1 e 2, de modo que se trata de uma pessoa com quem você tanto não concorda quanto, infelizmente, já manteve algum nível de intimidade, ainda que superficial e episódica, disque 3 e saia correndo. Para cancelar o/a sujeito/a que você não conhece e sequer ouviu, mas por quem sente uma ojeriza inexplicável, não havendo necessidade de explicar certa falta de abertura para entender comportamentos e posturas que em princípio a/o desagradem como indivíduo, digite 4. Para cancela...