Gosto dessa ideia de aterrar o
aterro da praia de Iracema. Me faz lembrar dos heróis que vestem a sunga por
cima da calça. Não fosse uma obra de engenharia civil, poderia estar exposta na
Bienal de Veneza – camadas e mais camadas de areia sobre a areia, a metáfora
viva da ruína urbana e da insistência no sem-jeito.
É algo que talvez Juraci
fizesse se fosse vivo e prefeito da cidade. Visionário que era, o velho
entendia de arte. Vejam suas paradas de ônibus monolíticas adornadas com o
slogan “Humanização com participação”, até hoje resistentes a sol e chuva,
diferentes dos abrigos metálicos magricelas e insuficientes onde mal se
acomodam cinco pessoas mais quartudas à espera de um ônibus que aceite dinheiro
– outra marmota que o Juça não haveria de permitir.
Mas voltemos ao aterro aterrado,
uma gambiarra urbanística que vai passando como solução inteligente para os
problemas da orla, como lembrou um amigo mais exaltado dia desses. Feito quase
tudo que é genuinamente cearense, carrega consigo a quintessência do improviso.
Se não se pode com as barracas e as ocupações irregulares, ou os esgotos dos hotéis
desaguados direto na praia como afluentes de um rio morto, que se afaste o mar.
E assim as carradas de material
vão se depositando entre os espigões, e a água, antes a poucos metros de
distância e à mercê da vista de quem se abeirasse na avenida ou numa varanda, então
se afasta. Como se pedisse licença para ir embora da cidade, levantando da mesa
do bar e encerrando a conversa de um jeito meio rude, deixando atrás de si um
rastro de cascalhos e garrafas plásticas. Tal como imaginado pelo Demitri, o
mar se despede e vai embora. Antes fosse brincadeira.
A praia de fato vai-se cada vez
mais um pouco, e o que era a história do lugar agora é a vitrine novidadeira de
um shopping cujas paredes reluzem. Às vezes é a própria memória que se aterra,
esboroa e cai feito reboco mole. Nela se penduram os produtos recém-chegados em
substituição aos antigos, enquanto aquela Fortaleza descolore, afunda e some,
esquecida em algum galpão como uma escultura do Sérvulo Esmeraldo.
Mas isso sou eu e meu jeito torto
de lembrar e querer bem. Não desgosto que mexam com o fixo e desestabilizem o
assentado. Até tolero que a cafonice oficial faça espetar bem no oco da areia
uma roda-gigante e lhe dê o nome de uma farmácia, que a patrocinaria e a cada
volta o usuário/cliente/nativo seria premiado com uma cartela de Dorflex e uma
ficha de cartão de crédito para preencher e entregar na saída a uma moça
sorridente vestida com macacão azul.
Que se faça da metrópole uma
única regional aquartelada entre pontes espichadas com pedregulhos, escassa de
sombra e coalhada de vendas de açaí. Problema algum. Mas não sequestrem o mar
de quem vive por aqui, sobretudo nesta época do ano, em que falta vento e a
brisa apoucada passeia na praia antes de chegar quase sem fôlego ao outro lado.
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