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Pessoas instagramáveis


Quão instagramável você é no seu dia a dia?  A dúvida bateu a caminho da padaria. Notei que usava uma camisa fubá, de pouco aprumo estético, com a gola um tantinho foló, e calçava um par de Havaianas de 2015, quando deixei de lado as anteriores porque o cabresto tinha arrebentado. A bermuda não era do tipo cargo, mas uma lisa azul-marinho repleta de pelos do gato.

Tampouco a padaria era instagramável, não havendo nela sequer uma parede com asas de anjo desenhada em cores berrantes diante da qual eu pudesse registrar o momento histórico em que, mal-vestido e mal-humorado às 8 horas da manhã, me punha a comprar seis pães (três carioquinhas e três massa-fina, o velho sovado) e uma caixa de leite sem lactose.

Meditabundo diante dessas limitações do meu cotidiano tão rés do chão e sem qualquer direção de arte, passei no caixa para pagar. Um desses caixas comuns, com uma esteira metálica rolante na qual a mercadoria desliza preguiçosamente, e um funcionário igualmente comum que me deu um bom dia protocolar enquanto esperava o bip estalado do leitor de código de barras. Ora, nada ali era instagramável, eu pensei.

A padaria não me pareceu feliz o bastante, o caixa estava visivelmente cansado e eu... Eu ainda calhei de ver o reflexo no monitor da máquina que me devolveu a imagem de alguém cujos cabelos eram como uma touceira de mato, visto que: 1) saíra sem me pentear; 2) não sou ninguém tão cedo assim. De modo que, corroído por essa sensação de afundamento matinal e pressionado pelo imperativo do digital nas nossas vidas, voltei pra casa procurando desesperadamente ao menos uma quina de muro, um banco de praça ou um pé de pau à sombra do qual eu pudesse parar e fisgar uma nesga desse meu dia que estivesse à altura do quadradinho mágico do Instagram. Mas qual o quê.

Não achei nada. Não tem banco nem praça entre meu apartamento e a padaria, apenas uma oficina que conserta eletroeletrônicos que tenta atrair sua clientela com um chamativo painel luminoso que informa a hora e o dia da semana. Como se vê, nada que reluza em neon num azul ou vermelho quentes ou produza na gente a sensação de estar dentro de um filme antigo: o filme das nossas vidas.

Disposto a arriscar, no entanto, bati palmas no domicílio e perguntei se poderia, por gentileza, fazer umas fotos minhas à luz cálida da oficina, levando a crer que eu era mais feliz do que de fato era. Expliquei ao proprietário que a disposição das peças rústicas, a aparência insalubre do seu local de trabalho e as mesas desarrumadas repletas de ventiladores e liquidificadores quebrados eram como um cenário de filme do Wes Anderson, mas com orçamento adaptado à nossa realidade.

Mas o senhor, que vestia uma camisa de botões que expunha a barriga pronunciada e não era propriamente um sujeito instagramável, disse que isso seria impossível, possivelmente supondo que eu era um fiscal da Prefeitura disfarçado de “instagrammer” e procurava ali não o melhor ângulo para me expor nas redes, mas algum documento ou alvará faltante. 

Me enxotou sem mais conversa.

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