Foi só depois que um amigo se
despediu falando “seja luz” que eu me perguntei se estava sendo luz o
suficiente, ou seja, se estava iluminando as pessoas do meu convívio feito um
desses postes da avenida Perimetral que esbanjam um halo amarelado sobre as vastas
porções de terrenos baldios. Ou se, pelo contrário, eu era uma lâmpada queimada
ou funcionando precariamente que deixava os outros às escuras, projetando
sombras contra as paredes como aqueles enfurnados na caverna platônica.
Então entendi que temos hoje
como que uma fixação por luminosidade e transparência, duas coisas que parecem
positivas à primeira vista e muito bonitas de serem ditas, mas são no fim das
contas coercitivas. Isso mesmo. A exigência de que sejamos “luz” o tempo
inteiro embute o desejo de banhar cada pedaço do corpo e do juízo, devassando
os espaços de intimidade e afastando a obscuridade.
O escuro é o confuso e o
não-conhecido. Por trás dessa mania, eu desconfio de que exista um desejo de
domínio do alheio e da alteridade, uma fluidificação da diferença e uma obsessão
pela exposição que se estende dos dados pessoais a qualquer hipótese de vida em
mistério. Mais que qualquer coisa, é o segredo e o pessoal que causam
estranheza, quase como uma gastura.
Daí o apelo: seja luz, cara,
deixe-se ver, exponha-se, revele-se. Ante o guardado, o negativo e o
mal-iluminado, impõem limpidez, positividade e luz. Tudo tem de estar à vista,
à mercê do olhar, à mostra, replicando a conduta já assumida nas redes, que é a
de total disponibilidade. E é aí onde mora o problema. Toda a vida, para
existir, carece de um acanhamento e uma reserva (eu diria até de uma
incompreensão) que lhe são próprios, seja para o cultivo das agonias, seja
porque, apesar de todos os avanços e de todas as mídias à disposição, ainda
sofremos. Bom que seja assim.
É o sofrer que humaniza, o
sentido do trágico é o fator que nos devolve ao mundo justo quando mais nos
separamos e afastamos. Convém lembrar que, sobretudo nas produções cinematográficas
distópicas, o totalitarismo tem sempre essa aparência de asseio, de que cada
coisa está no seu lugar devido e tudo emana placidez, numa cadeia de
organização imperturbável. A transparência é, portanto, essa ausência da
perturbação, o calmo suceder de horas e dias imunes à aspereza.
Não digo que o amigo me
desejasse o mal ou que suas intenções fossem ruins, mas talvez haja nessa
exortação (“seja luz”), repetida como mantra, uma solução pela eliminação do
que no outro é ainda aresta e incompreensão – do que é inacessível.
A fim de rasurar essas marcas,
aparando as superfícies e aproximando o distante, a gente roga para que esse estranho
se dispa, ponha as vergonhas de lado e permita-se enxergar por inteiro, numa
quase pornografia. Mas é exatamente essa nudez literal o que embota a vista. Hoje,
o maior inimigo do entendimento e da aceitação não é o escuro entre as pessoas,
mas o excesso de luz.
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