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Duo

“Contenção e dissipação.” Tinha anotado essas palavras num bloco antigo esquecido numa gaveta. Aspeadas, presumo que quisessem dizer mais do que de fato dizem. Uma ideia para um conto, quem sabe as linhas de força de uma história, as bases para um personagem. Vai saber. Agora olho para elas como se fossem uma contrassenha, o  password como os dos jogos de videogame que me permitiam viajar a fases mais adiantadas ou ingressar em mundos cujo acesso de outro modo seria impossível. Contenção – uma tarefa. Dissipação – sobretudo um verbo. Missão e exercício. Dois movimentos singulares num ato performativo. Primeiro o mistério do acúmulo, a reunião de forças, a energização. Depois jorro e fragmento. Tensão e jato. Sexo e ejaculação. Pensando bem, há mesmo um sentido de complementaridade entre elas. Como se, juntas, apontassem para um rito procedimental. Procedimento-padrão: contenção seguida de dissipação, que antecede nova fase de contenção. É uma anotaç...

Uma foto triste

Não sei se consigo falar um instante sobre essa foto nova na qual apareço sorrindo e de olhos apertados e os cabelos mais longos e mais grisalhos também. É uma foto de duas semanas atrás, talvez três, portanto lembro perfeitamente de tudo que se passou naquele momento. O instante exato da foto. Lembro de desejar aparecer muito bem e sorrindo e mais que isso: lembro de estar de fato muito contente. Por quê? Não sei ao certo. Mas a foto diz que sim. Na foto eu assino cada folha de testamento e repito mais uma vez as mesmas palavras que venho repetindo desde muitos dias antes, quando o mantra era remédio e a novena uma forma de organizar o tempo em porções iguais. Palavras que haviam sobrado, colhidas no escombro. Feitas de matéria arrasada. Palavras de escassez, mas boas palavras com as quais podia agora construir e desenhar e dançar numa noite de sábado. Palavras para beber e ir ao cinema e varar madrugadas a jogar sozinho diante da TV luzindo como o centro...

Praia/sertão

Em pesquisa rápida para a crônica semanal que escrevo no jornal O POVO, chego a uma página que explica em pormenores o cheiro do mar. Falava de vento, essa força que arrebata, e queria entender por que o mar tem o cheiro que tem, um odor característico que é como a junção de muitos odores. Procurava uma palavra que traduzisse então o predomínio do salgado. Fui bater em corrosão. Da crônica original excluí um parágrafo inteiro que reproduzo agora: “Aqui o vento ergue-se desde o mais perto dos pés, arrancando da terra a quentura, e depois levanta-se num ímpeto, percorrendo o corpo e nesse trajeto deixando as marcas”. Agosto e setembro são os meses de ventania que atraem ao Ceará turistas e praticantes de esportes. É quando as hélices giram mais velozmente, as árvores agitam-se quase a deixar as calçadas e sair em caminhada e as roupas estendidas nos varais reviram-se sobre si mesmas. Tudo é inclinação e dobradura. Mas há principalmente essa particularidade: ...

O professor

O professor escreve e pergunta se há objeção quanto à mudança de horário da aula. Como ninguém respondesse, assume a alteração. Um seminário de filosofia sobre a obra de Camus. Quatro aulas. Faltei à primeira. Para a de amanhã consta que precisaria haver lido uma obra que não li. Provavelmente faltarei também. Mas há sempre essa hipótese de que compareça e, já na sala, procure uma das cadeiras ao canto e lá fique por duas ou três horas. É um exercício de desmaterialização esse de estar à margem, suspenso enquanto os outros falam, tateando sentidos no fluxo de palavras. Ideias de uma galáxia alienígena. Outra vida, suponho que a gravidade talvez maior empurre os corpos para baixo. Na faculdade todos andamos noutro ritmo. Gosto de estar no bosque por duas razões, primeiro por chamar-se bosque e segundo porque se trata de um pedaço muito longe da cidade. O professor então arremata renovando o convite e repassando os compromissos que espera que seus alunos de pós...

Exercício III

Trouxe comigo mais que o corpo do pai. Trouxe o sangue. Trouxe os olhos e a boca, as pernas e os braços, o torso e os pelos que recobrem os dedos, as costas e os medos, a vingança e os sonhos, os modos de rir e beber. Trouxe a vida que o pai não viveu porque ele mesmo era morto muito antes de estar vivo.  Trouxe o cheiro do pai, esse que me acalmava quando era criança e pedia pra usar uma de suas camisas porque a saudade era tanta e ele nunca estava perto, nunca presente. De maneira que me restava apenas esse odor próprio, uma mistura do suor das noites de trabalho e amor fora de casa com os vapores domésticos, a comida da mãe, os sabonetes que usava, os perfumes com que se banhava antes de sair e não voltar.  Do pai vieram também a língua, a fala, o tempo sem raiz, a falta de rostos dos avós, a linha da família que se perdeu, o sangue diluído depois de tantos cruzamentos, as histórias de outro pai que não era o meu, o tio perdido na selva amazônica ainda nos anos 1970, a ...

Exercício II

Ano passado desejei entregar tudo, a vida desmoronando aos bocados. Tudo sempre se danifica. Feito essas paredes nas quais mal encostamos e os pedaços de reboco úmido esboroam, espalhando-se pelo chão. A sensação de que o mundo está condenado. A avó costumava dizer das coisas que não tinham mais expectativa. Estão condenadas. Era uma sentença. Esta camisa está condenada, esta comida está condenada, esta criança está condenada. Um arroz que a mãe salgasse porque estava distraída pensando no pai: está condenado. Uma parede que o pedreiro erguesse torta porque depois do almoço tomara uma pinga na bodega antes de voltar ao trabalho: está condenada.   Quando minha mãe conheceu meu pai, ela uma menina e ele também, a avó resmungou na soleira da porta de casa: está condenada. A mãe não deu ouvidos. Jamais daria. Precisei estar no sertão para descobrir que a água amolece e o sol cresta e quase tudo é morto antes de nascer. É uma lei natural. Sempre imaginei o contrário, mas nã...

Exercício I

Fiz a arribação às avessas. Voltei pro sertão porque nunca fui do sertão. Esta geografia morta não diz nada, garranchos de vegetação, traços de um rascunho esquecido por algum viajante que passou por aqui e agora já se estica em alguma cama de uma cidade que não sabemos qual é. Conhecia de estudar e ler, figurações de uma vida, projeções de um universo, uma estética de escola decorada às pressas para a prova do dia seguinte. O sertão da literatura não é o sertão de verdade. O sertão de verdade não é em toda parte, é exceção. Não é em parte alguma. É uma negação. Não é lugar mágico. É uma travessia sem volta. Um encontro de morte que promovemos quando a morte alcança de fato. Um lugar pra esquecer as dores. Deixá-las aqui a morrer de fome e sede, perecendo dia após dia, desidratadas do mínimo de que necessitam, viventes abandonados para que encontrem a própria sorte. Mas não vim ao sertão pra morrer, vim pra chorar, cumprir o rito e depois secar novamente. Morrer é mais fácil ...