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Um cigarro

Ao fim é como se apenas agora entendesse. Deixar o rastro, fixar o que escapa, fincar uma estaca no ponto e na hora exatos em que tudo acontece para que depois olhe e veja exatamente o local de onde tudo partiu em direção a outro lugar. Como um foguete lançado não espaço, mas para dentro da Terra.  Um marco de nascimento e morte, mas do quê e de quem, eu não sei. Ensaiamos sempre pensamentos graves que elevam a dramaticidade de atos banais. Digo cavar, e imediatamente penso em morte ou coisas assim. Uma bobagem. Digo vida, e o mesmo sucede, rolhas de champanhe, festas e viagens para muito longe. Importante é reter este instante. O momento. Este de agora. O de hoje, ontem, antes de ontem e muitos dias atrás. Tê-lo nas mãos ainda por alguns segundos. E então continuar. Ontem por algum tempo estive lá fora encostado na mureta. Lembrei de tudo.  É tanto. Um tumulto de memórias e meses e anos que vêm aos galopes. Cruzo a esquina na volta pra casa. Um h...

Viagem ao fim da noite

Este é um teste desses que fazemos pouco antes de dormir. Checamos as fechaduras, escovamos os dentes, lavamos os pés. Em seguida, ainda como a duvidar de certa concretude das coisas, damos uma boa olhada no espelho a ver se tudo está no lugar. É então que descobrimos que temos as sobrancelhas assimétricas, os olhos desalinhados e o lado esquerdo do lábio superior um pouco repuxado, imperfeição evidente nessa foto na qual sorrimos sem jeito nem razão. Um teste é também o momento em que, mal chegamos à casa, vasculhamos cada canto. E nos cantos deixamos um pouco do que é pele e cabelos e pensamentos que fomos acumulando no curso do dia como poeira nos bolsos. Num teste por certo inventamos uma contrassenha para a porta e outra para a janela e mais uma para a torneira da pia. Pra arrematar, desistimos das mensagens mais antigas esquecidas em algum dia remoto do mês de março numa conta de email que já nem usamos. Um teste é uma linguagem que passamos a adotar perman...

Carlos, o bêbado

Finalmente reencontrei Carlos, o bêbado. Carlos é e não é o que pensamos. Está na praia todos os dias, carrega sempre uma garrafa de cachaça a tiracolo. É um pastorador de ventos. Ontem tangia um gato quando passei de bicicleta e ele olhou sem me ver, apenas vagamente impressionado por me reencontrar ali tanto tempo depois. Quis lhe perguntar, chegar mais perto, mas era tarde e a fome batia. Carlos: a barba mais longa, o olhar quebradiço de quem não dorme já há muitos dias, um aspecto em tudo destoante do Carlos que imaginei. O tempo opera pequenas vilezas. Convém na cair nas suas armadilhas. Carlos foi meu confidente, agora já nem me escuta. Antes que o alcoolismo o lançasse nesse torvelinho de desvario no qual não distingue o dia da noite, eu lhe puxava a manga da camisa e perguntava: ela virá? Carlos assentia. Ela sempre vem. E então tornava a bebericar aguardente como o passarinho extraviado ou as aves de papel que ela deixara por ali não fazia tanto tempo....

Sonhos

Sonhos que se tornaram frequentes: Mulher deitada de costas, rosto encoberto, nádegas à mostra, fala baixinho algo que não entendo. Um convite ou um gesto qualquer de repulsa? Perseguição, tiros, morte. Morri duas vezes na mesma noite, corria e não adiantava. Numa esquina, dois homens perguntavam nome e profissão. É você, diziam. Disparavam. Sentia o corpo dormente, os membros formigando, a cabeça tonteando. Nos sonhos morremos sem morrer. Acordamos assustados depois. É o mais próximos que estamos do fim sem de fato havermos chegado ao fim.   Noutra semana sonho que danço a madrugada com uma mulher muito bonita que me pergunta se sei chegar andando até a praia. Não quer ir de ônibus. Falo que é distante e o caminho, deserto. Ela se recusa. Precisa ir a pé, do contrário não saberão que é ela. Pede que a acompanhe, mas iremos sem sapatos ou sandálias. Descalço os pés. Estou na rua novamente.

Porta

Há horas rasuro a folha, procuro o ponto certo como se batesse o bolo ou apostasse noutra coisa que requer paciência. Encenar o ato, encarnar a dor. Escrever o dia quando o dia ainda acontece. E pensar: quem acordará amanhã? Quem do outro lado andará até a porta e na porta encontrará outra porta? O mesmo.

Já faz um ano

E eu ainda tão castigado pensando agorinha que o tempo corre depressa.  Queria até que fosse um desses lugares comuns para os quais a gente torce o nariz esperando que nada aconteça. Mas não é. É depressa mesmo. Piscamos, e passou. No dia a dia comprovamos essa celeridade. Uma certa ligeireza na andança. Uma vontade desecudada de que o velho se torne mais velho ainda. Quando vimos, já foi, não há volta. De repente alguém dá a notícia de que viu o tempo dobrando sem um aceno sequer, o tempo embarcando no ônibus, entrando no mar, saindo da piscina e enxugando o corpo com uma toalha branca e depois se dirigindo ao carro. O tempo estacionando. Ou, feito Caetano, atravessando uma rua do Leblon. Como seria bom flagrar o tempo assim tão à vontade num livre acontecer, o tempo de chinela e bermuda despreocupado se desfaz ou reata, se mastiga ou cospe, se beija ou abraça. O tempo apenas sendo.  Um tempo que não avisasse que fosse, tampouco fosse de fato.     Ma...

A dança

No canto pensava se a dança era o começo do sexo ou o contrário, se havia espaço ou tudo se fundia, se a música era excesso ou parte faltante, se tendia a se diluir nos outros ou a se condensar, se olhando o corpo da mulher insidiosa do outro lado   supunha que o seu próprio corpo também fosse regido pela mesma régua. Mas dança não é régua, dança é desmarginação. Dança é uma presença. Abraçou-a mais ainda, o torso já muito suado, as pernas encaixadas no vão das coxas, a mão deslizando pelas costas. Luzes estroboscópicas, um ventilador ligado que ampliava a sensação de calor, as cortinas abertas, a barraca de cerveja coalhada de gente e a mesa com a parafernália dos DJs da noite, que tocava música caribenha. Alguém pergunta se quero cachaça. Não rejeito. Outro oferece cerveja: bebo direto na garrafa. Ela encosta no ouvido. Diz que dali a pouco iremos trepar. Não está sugerindo, mas ordenando. Tem pressa. Encara e repete: pressa, cada sílaba já enleada nos goles da b...