Pular para o conteúdo principal

Já faz um ano

E eu ainda tão castigado pensando agorinha que o tempo corre depressa.  Queria até que fosse um desses lugares comuns para os quais a gente torce o nariz esperando que nada aconteça. Mas não é.

É depressa mesmo. Piscamos, e passou.

No dia a dia comprovamos essa celeridade. Uma certa ligeireza na andança. Uma vontade desecudada de que o velho se torne mais velho ainda. Quando vimos, já foi, não há volta. De repente alguém dá a notícia de que viu o tempo dobrando sem um aceno sequer, o tempo embarcando no ônibus, entrando no mar, saindo da piscina e enxugando o corpo com uma toalha branca e depois se dirigindo ao carro.

O tempo estacionando. Ou, feito Caetano, atravessando uma rua do Leblon. Como seria bom flagrar o tempo assim tão à vontade num livre acontecer, o tempo de chinela e bermuda despreocupado se desfaz ou reata, se mastiga ou cospe, se beija ou abraça. O tempo apenas sendo. 

Um tempo que não avisasse que fosse, tampouco fosse de fato.   

Mas vejam que daqui a pouco faz um ano da morte do Belchior. Um ano depois.  Dia 30 de abril. 

Foi num domingo de manhã. E agora estamos às vésperas disso que costumamos chamar de aniversário de morte. Nós, os vivos. Como se os mortos fossem se erguer de suas covas e celebrar com a gente uma data tão importante quanto o dia em que eles morreram.

Mas os mortos não voltam, a eles é indiferente se estamos felizes ou tristes, se sentimos falta ou se temos lembranças ainda queridas guardadas em caixas de papelão, cartas enfiadas no mais fundo de uma gaveta. Os mortos não se importam, são parte dessa família de coisas que se findam e pronto, é preciso apenas aceitar.

Então por que o susto?

Não é bem susto, só uma dessas admirações que temos no curso dos dias, um jeito de abrir a geladeira e o banal se espatifar no chão feito uma travessa que deixamos cair de propósito porque não temos agora força suficiente ou vontade ou desejo de reter nada nas mãos. 

De maneira que os objetos simplesmente caem. Levem o tempo que for, eles despencam e quebram, alguns apenas arranham, outros se danificam pra sempre. Não há mais jeito, conserto ou assistência técnica a qual recorrer numa quarta de tarde em procura de socorro ou alguém que entenda de mecanismos tão frágeis. 

Um susto, até dois por dia, tudo isso que digerimos aos poucos nesse intervalo em torno do qual concordamos: é preciso que passe o tempo que for, mas que passe. 

Como este espanto de agora: já faz um ano. Um dia era abril de 2017, agora é agora, quase 30 do mesmo mês deste ano. Tanto tempo parece ter se passado de lá pra cá, tanto mar, tanto abraço, tanta coisa sem medida que me pergunto se não é o caso de inventarmos uma unidade especial para mensurar o tamanho das coisas que não cabem nesse hiato. 

Essas coisas que continuam a crescer por conta própria, como se tivessem vida, como se, presas num fundo ou escondidas ou golpeadas, simplesmente se recusassem a morrer.  

Ao diabo com as coisas que não morrem. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...