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Romance de morte

A difícil tarefa de extrair do mais fundo essa ideia criada muitos meses atrás. A incapacidade de, no manuseio dessas ferramentas do dia a dia, ir enterrando as mãos no próprio corpo e nele encontrar e eviscerar calmamente o sentimento até que não reste senão a ideia do sentimento. Um afeto apenas de lembrança e conceitos e pequenos estremecimentos que chegam assim no meio da tarde como sem aviso e sem aviso também vão embora, deixando em seu lugar silêncio e outra coisa que não sei.   Matá-lo a fome e sede, inanição induzida, cortar-lhe oxigênio para que morra e morrendo viva, mas não aqui, não agora, não dessa maneira.  Convém estudar-lhe antes as maneiras, como se locomove e do que se alimenta, se respira debaixo d’água, se é imune ao sol, se sobrevive muito tempo longe da terra e se, acuado, recua para um buraco e nele se esconde até que tudo passe e ele possa novamente colocar a cabeça fora da toca.  Não faço ideia da natureza das coisas sem natureza defi...

Modos de amar e desamar

O amor tem seus mapas, suas metas, suas métricas, seus lugares e estâncias, seus pontos de partida e interditos, espaços de parada e de encontro à mercê dos quais se perde o fôlego e se recupera a vida. O amor tem vetos, vestes, maios e desmaios, sonhos e pesadelos habilmente tecidos por mãos de cujo futuro não conhecem sequer o palmo adiante dos próprios dedos. O amor tem uma geografia: praias, dunas, campo, caatinga e cerrado, o rural e o urbano amalgamados, o litorâneo e alpino, o salgado ou doce. O amor é tempo por vir, porvir, porventura, por causa e consequência, por fardo e fado, por tango e bolero, por certezas de muito e incertezas de nada. O amor tem uma gramática transmitida de boca a boca: palavras que se repetem, nomes, significados reiterados, vocábulos descobertos apenas em dois, um jeito próprio de falar e pronunciar, uma ênfase no dito mais que no sugerido, um abraço descrito em pormenores exaustivos e   rememorado em prosa e verso, um cheiro que é...

A arte e a ciência do pescotapa*

Condeno o pescotapa, mas acho uma coisa sensacional ao mesmo tempo. O significado e a sonoridade. Junção das palavras pescoço e tapa, esse neologismo é misto de afago com agressão, pasmo e calmaria. Espécie de sapatênis vernacular, tem características tanto hostis quanto de camaradagem. Essa versatilidade resume muito bem o estado de espírito do País hoje, dividido entre a cabeça polarizada e o tapa no rosto, que aqui no Ceará chamamos graciosamente de tabefe. Não é de espantar, portanto, que o pescotapa seja uma autêntica invenção brasileira, uma jabuticaba do maior esporte nacional atualmente: a treta. E quem é nosso Garrincha da peleja verbal, nosso Pelé do entrevero, nosso Zico da cizânia, nosso Romário do bate-boca? Sim, ele mesmo: Ciro Gomes. Ou “Cirão da Massa”, tornado assim por obra e força das redes sociais, que veem no seu jeitão de cangaceiro ilustrado em Harvard o homem talhado pra resolver os problemas do País – no gogó ou na mão. Daí que seja tão prolífico o encontr...

Domingo

Domingo, e o céu escuro como se desabando aos poucos, ameaça que nunca se concretiza. Carregado, anuncia chuva que não chega, banho que não vem, sereno que alivie o cansaço, mas não o de agora. Abro um arquivo. Dentro de um texto, um novo texto que não sei qual é. Escrevo porque preciso abismar - e digo abismo literalmente, cavar com as próprias mãos em solo rude, estragá-las nesse esforço e nisso criar outras mãos que saibam outro ofício mediante outra gramática. Estar diante do que seja agora a curva e na curva um encontro.    Exercício de paciente espera. Leio de acaso, e de acaso pesco o trecho: “Pelos campos fora/ Caminhava sempre/ Como se buscasse/ Uma presença ausente”. É Sophia de Mello. Levo horas olhando seu rosto na capa do livro, uns olhos fundos, a boca entreaberta, os cabelos curtos à altura dos ombros, um vestido bonito de quem se preparasse sempre a ir a passeio ou festa no fim da tarde. Então penso nisso. Na ideia de passeio, tarde e disposição ao e...

Notas de um a três

Nota 1 Uma experiência na cozinha. Acender o fogo, preparar a comida e ligar a música. Depois ouvir a música enquanto espera a comida. O tempo do cozimento, que não é o tempo da música, transcorrendo no compasso de outro tempo. Nenhum o tempo de que precisa para que passe. Nota 2 Andou de bicicleta e esqueceu a bicicleta. Pendurou-a no gancho do estacionamento do trabalho dois dias atrás e não voltou para buscá-la. Esquecimento. Todos os dias, ao sair do jornal, pergunta ao porteiro se a bicicleta ainda está lá. É minha, diz. Amanhã voltarei para vir pegar. Vai até o gancho. Ela ainda está lá. Depois segue a pé, novo modo de se deslocar. Andar. Estar à toa na calçada mastigando pensamentos. Nota 3 Fim de tarde. O dia consumido como num sonho, as horas sem conexão, e no entanto, uns pontos e vírgulas depois, amontoa frases e costura orações como quem entrega ao freguês um trabalho que não lhe toma nem tempo nem energia. Apura os ouvidos. Sons de pássaros, carros que voam,...

Entre outras distrações

Passear o olhar, deter-se na quina do objeto, deixar-se estar no final da tarde encostado a um muro e nesse muro enxergar a planta que cresce na fresta. Fotografar a árvore que abre os tijolos sem educação, como a dizer que segue a depender unicamente do próprio gosto. Pegar a luz pela mão, uma camada oblíqua de amarelo-queimado, essa cor de lápis de pintar que desaprendemos depois a chamar pelo nome que tem. Depois acender e apagar o cigarro. O chão coalhado de goiabas amarelas que caíram do pé ainda pela manhã. Lembrar que, ainda ontem, um homem foi apanhando uma a uma, mas que hoje já estão ali aos montes. Amarelo ainda a cor favorita. 

Não olhe pra trás

Abro o livro ao acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já soubesse de antemão. Então encontro essa história. Uma garota que perdeu a memória depois que seu namorado foi embora. Na verdade, ela tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade. Ou da turma de teatro. O fato é que a menina esquece tudo no lapso de um ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças.  Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.  Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia esta...