A difícil tarefa de extrair do
mais fundo essa ideia criada muitos meses atrás. A incapacidade de, no manuseio
dessas ferramentas do dia a dia, ir enterrando as mãos no próprio corpo e nele
encontrar e eviscerar calmamente o sentimento até que não reste senão a ideia
do sentimento.
Um afeto apenas de lembrança e
conceitos e pequenos estremecimentos que chegam assim no meio da tarde como sem
aviso e sem aviso também vão embora, deixando em seu lugar silêncio e outra
coisa que não sei.
Matá-lo a fome e sede, inanição
induzida, cortar-lhe oxigênio para que morra e morrendo viva, mas não aqui, não
agora, não dessa maneira. Convém estudar-lhe antes as maneiras, como se
locomove e do que se alimenta, se respira debaixo d’água, se é imune ao sol, se
sobrevive muito tempo longe da terra e se, acuado, recua para um buraco e nele
se esconde até que tudo passe e ele possa novamente colocar a cabeça fora da
toca. Não faço ideia da natureza das
coisas sem natureza definida.
Meu projeto é de morte, é de nadar até não haver fôlego, exaurir o corpo e na exaustão descansar, encontrar paz.
Meu projeto é de morte, é de nadar até não haver fôlego, exaurir o corpo e na exaustão descansar, encontrar paz.
Escrevo paz e automaticamente
tenho vergonha, escrevo sossego e logo quero despedaçar cada muda de roupa e
atirar fora todos os livros que li por madrugadas inteiras porque neles aprendi que não
há calmaria nesse lugar aonde pretendo ir.
O meu projeto é de defenestrar.
Jamais pensei em usar essa palavra terrível para algo assim. Lembro de Ana C.
saltando pela janela. Havia beleza nessa queda?
HH escrevendo loucamente e
loucamente adoecendo de amor, mas sobretudo vivendo os últimos anos e nesses anos
os dias todos preenchidos apenas de vontade. Uma poeta em conversa permanente
com espíritos, cercada por emanações vaporosas que eram gente, ruído, paixões e gozos inadiáveis, eram apelos ruidosos para que ficasse e aqui
voltasse a se entregar.
Mas isso era HH. Eu sou apenas uma
letra, um H, consoante muda que não dobra nem triplica, arruinada de antemão
pelo silêncio, uma trave sustentada por colunas.
Então é o nome que pretendo
agora matar a golpes de qualquer arma que se preste à morte: vontade. O nome, a
letra, o H desgarrado de alfabeto.
Tudo começa e termina nessa
tentativa canhestra de enterrar as unhas e buscar no mais fundo o veio d’água
possível. Dele viver uns bons dias sem fartura nem miséria, apenas o que de preciso para a travessia.
Feito a cacimba do quintal da
avó. Quintal inexistente aonde ia quando tinha seis ou sete anos. Admirar o fosso
no meio da tarde era o divertimento de menino. Encantamento de uma queda que
nunca vinha porque eu sempre evitava cair. Então batia na porta da vizinha e
dizia que era boa hora pra brincar, e lá íamos até o beco e no beco enfiávamos
os pés na areia preta e úmida que era como nossos corpos de criança.
Ali o fundo de água possível.
Não morreria de sede, cairia mas não morreria, ficaria talvez dias e dias até
que alguém me encontrasse, a mãe, o pai talvez, a avó certamente. Nesse buraco
eu poderia falar com os peixes, uns poucos, que responderiam em linguagem de
peixe movendo as barbatanas e descamando mensagem que eu não entenderia.
Todavia entendo. Falo
com peixes, dou mergulhos demorados na praia e volto cheio de conversas, restos
de outra vida, retalhos inservíveis que junto e digo que me pertencem.
Isso também é matar. Estar ao
largo do que importa, combinar rotas, alterar drasticamente o trajeto e nele
inserir pontos de interrogação, liberar-se de qualquer receio. É isso o que
dizem os peixes roçando pele contra pele quando vem uma onda mais forte e de
súbito perco esse peso todo que levo comigo.
Os peixes carregam o peso e o
devolvem ao mar. E dizem mais. Dizem que toda paixão é caminho
de morte. Que todo corpo se consome. Que toda ideia se finda.
Conheço bem
essa geografia do sonho e do desespero.
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