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A arte e a ciência do pescotapa*

Condeno o pescotapa, mas acho uma coisa sensacional ao mesmo tempo. O significado e a sonoridade. Junção das palavras pescoço e tapa, esse neologismo é misto de afago com agressão, pasmo e calmaria. Espécie de sapatênis vernacular, tem características tanto hostis quanto de camaradagem. Essa versatilidade resume muito bem o estado de espírito do País hoje, dividido entre a cabeça polarizada e o tapa no rosto, que aqui no Ceará chamamos graciosamente de tabefe.

Não é de espantar, portanto, que o pescotapa seja uma autêntica invenção brasileira, uma jabuticaba do maior esporte nacional atualmente: a treta. E quem é nosso Garrincha da peleja verbal, nosso Pelé do entrevero, nosso Zico da cizânia, nosso Romário do bate-boca? Sim, ele mesmo: Ciro Gomes. Ou “Cirão da Massa”, tornado assim por obra e força das redes sociais, que veem no seu jeitão de cangaceiro ilustrado em Harvard o homem talhado pra resolver os problemas do País – no gogó ou na mão.

Daí que seja tão prolífico o encontro de Ciro com um integrante do MBL, esse movimento pândego-juvenil pretensamente liberal cuja política traduz na prática o que o pescotapa é na teoria. Como numa pororoca ideológica, o ex-ministro e um sujeito chamado Arthur “Mamãe Falei” (é isso mesmo) se esbarraram num evento qualquer. Lá, o jovem, de verve reconhecidamente galhofeira, lhe pespegou o seguinte gracejo: “E aí, Cirão, como está indo o sequestro do Lula?”.

De temperamento mercurial, o pedetista arreliou-se, respondendo-lhe com a mãozada na nuca. Ex-governador e ex-ministro, o político é frequentemente apontado como “pavio curto”. De modo que o gesto não é propriamente uma novidade para o cearense. Por estas bandas, a gente já se acostumou a ver Ciro tangendo manifestante na base do grito e rasgando cartaz de estudante secundarista numa época em que ele ainda não era essa figura popular e o seu meme mais famoso, no qual aparece com o corpo balouçante, tinha poucas visualizações.

O problema não é o pescotapa em si, embora ele seja mostra de que Ciro não consegue se livrar desse coronelismo atávico. A questão é que, se comparado aos tiros na caravana do Lula ou às chicotadas que um ruralista deu num militante petista, a hostilidade soa como a bolinha de papel atirada na careca do José Serra. E precisamente aqui chegamos a um beco sem saída.

No próximo sábado, dia 14, o assassinato da Marielle completa um mês. Até agora, ninguém foi preso. Pelo contrário: um assessor informal de vereador foi morto depois que o parlamentar, supostamente ligado a milícias no Rio, depôs à Polícia. Dias atrás, o principal operador de propinas do PSDB, Paulo Preto, foi detido durante operação da PF. Na mesma semana, Michel Temer renovou as garantias de foro privilegiado de Moreira Franco (denunciado pela PGR), que ganhou um ministério para chamar de seu. O presidente fez isso um pouco antes de o doleiro Lucio Funaro entregar documentos comprovando repasses de R$ 10 milhões da Odebrecht para os “Amigos de Temer”, que poderia ser apenas o nome ruim de uma banda de pagode dos anos 1990, mas é como se chama a quadrilha instalada no País neste momento.

E, apesar de tudo isso, o assunto que domina as redes é o pescotapa que um presidenciável desferiu num engraçadinho, ninharia que, exatamente por se tratar de coisa tão sem importância, só deveria interessar a Caetano, que canta parabéns para Fortaleza na sexta-feira dias depois de haver declarado o seu voto adivinhem em quem? Sim, nele mesmo: “Cirão da Massa”.

*Coluna publicada no jornal O POVO de hoje.

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