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Um papo com H

H, meu amigo, não vá por aí, tampouco por aqui. Qualquer direção precipita o dito, e toda escolha é também o fim da linha. Conheço você há tempo suficiente pra entender que tem evitado tudo isso por uma razão que talvez não entenda. Não é brincadeira, H, viver não é preciso. Lembra da foto na praia? Então. Aquilo também mexeu comigo, também me fez tremer um pouco, sobretudo agora nesse período de festas e coisas tais que nos colocam meio tristes. Já pensou na tristeza que é uma árvore de  Natal, por exemplo? Um rosário com bolinhas de neon na entrada do prédio? Tudo tão enfeitado, tão excessivo, inflacionado.  H, meu irmão, meu alter-ego, minha sombra na qual projeto tanto de medo e de coragem, tanto de amor e de vida. Não se canse, não se renda, não se amole com essa conversa de que as coisas passam.   Nada passa, H. Tudo é permanência.  Outro dia li uma carta que você escreveu a um amigo que não pediu sua opinião, mas, como contigo é s...

Pessoas que talvez você conheça

A segunda frase que tinha anotado no caderno era essa. Uma sentença que leio frequentemente quando entro no Facebook e ele se encarrega de sugerir rostos e nomes, numa roleta de afinidades eletivas baseadas em algoritmos cuja lógica interna é tão precisa quanto adivinhar o futuro na borra do café. Pensei nas cartas, no dia de ontem, nas fantasias que escolhemos matar, num poema de Ana Martins Marques postado na mesma rede social que termina com uma frase marcante que evito até reproduzir porque não sei que estragos é capaz de causar em alguém tão cheio de suscetibilidades, uma deficiência que se acentua às vésperas do Natal.  Pessoas que talvez você conheça são amigos dos amigos, gente que, em tese, tem interesses comuns aos seus. Ou ainda pessoas que vão passando pela linha do tempo da vida de cada um. Outra expressão engraçada: linha do tempo.  Esta eu não anotei, mas falo dela aqui brevemente.  Curioso pensar no tempo como um novelo que se desdobra, da...

Uma conversa com R

Conheci R há poucos dias. Ela me mostrou uma foto na qual a mãe lê o jornal com o corpo inclinado, voltado pra frente, segurando uma lupa com que aproximava a vista das letras. O papel cede diante dos olhos, dobrado. É uma imagem bonita pela qual sempre agradecerei. Pensei na minha própria velhice. Onde estarei, como, com quem. Se vivo ou morto. Se consciente ou falho, se ainda disposto e mesmo interessado no mundo, se muito amargo ou apenas um pouco.   R disse que a mãe se prende ao agora, que acompanhar o noticiário é seu modo de não esquecer, e nisso também há tanta beleza. Um fio que se estende ao instante. Ela, que mora de frente ao mar e acorda todos os dias para uma imensidão aquosa, escolhe o jornal por janela, o presente como paisagem, o cotidiano como escapismo. Isso também me fez pensar em mim. Precisamente, no quanto há de fuga quando imaginamos mergulhar na realidade, quando supomos que escolher as horas do dia e cumprir certos ritos e tarefas é acei...

Um sítio no coração

Anotei essa frase. Era o título de algo, um conto talvez. Uma novela. Nada de enredo ou personagens, talvez uma ou outra coisa acontecendo em meio a tantas outras que não acontecem. Gostei do sítio. É uma palavra bonita, quer dizer tanto. Um lugar de passagem, de pouso. É também como os portugueses chamam site , esse espaço virtual por onde nos deslocamos como se fosse a realidade. O simulacro de algo, portanto, mas também um tipo de estância.  O sítio no coração, então, é um enclave físico e virtual no centro afetivo, um fluxo de memórias e sentimentos expandindo-se e contraindo-se. Sístole e diástole, os dois movimentos básicos de vida e morte. Era uma frase perdida num caderno esquecido na mochila até dar com uma imagem. Um coração suspenso na areia. Tudo ganhou sentido, ou talvez eu apenas ache que sim, mas, no fundo, as coisas continuem um pouco enevoadas. O coração no mar tem umas janelinhas coloridas. Como se fosse a casa. Exatamente o mesmo nome do livro q...

O amor não chega a tempo

Li com interesse a história de vocês. Imaginei esses encontros numa cidade que tampouco domino. Meu único elo com Recife foi ter recebido cartas de lá, um primo que me escrevia com regularidade e a quem eu respondia com bilhetes. Recife. Sei do carnaval e do frevo. E agora dessa história de separação, mas também de encontro. Difícil seguir, eu sei, mas pense, e aqui falo principalmente pra ti, que talvez ela esteja bem. Não sei se têm mantido contato. Têm? De todo modo, essa carta não parece sugerir um estado de ânimo dos mais alegres. Acho que comete um erro lhe escrevendo nesse tom de desabafo, quase uma rendição. Não se renda, não ainda. O amor não chega a tempo. Por onde ela andará? Você não responde na sua carta, que, embora privada, foi tornada pública na internet. Foi lá que a encontrei: numa rede social. Acenei, disse um nome. E agora leio a carta de vocês. Melhor, sua pra ela, uma carta numa única direção. Quem sabe chegue ao mar. Ela vai ler? Ess...

Fragmentos

1. A conversa, o rosto contra os azulejos portugueses. Uma tarde funda na memória outra realidade, a realidade cede facilmente, e então o que vemos é sempre esse borrão de sonhos despedaçados.  A lembrança de que chorara. Sim, havia sido choro. No meio da tarde, pessoas indo e voltando, ele parado, os olhos vidrados num tempo futuro que havia se tornado passado de repente e que novamente saltara para a frente.   Subitamente calmo, como nos piores momentos da vida. Incapaz de levantar a voz, os gestos como que coagulados no dia. Restos de si para conjurar, fragmentos, cacos de mentiras. Era todo uma violência que irrompera nos últimos meses. Todo o amor.  Não disseram nada por muito tempo. Quis acender um cigarro, precisava fumar urgentemente, mas temia que isso o distraísse. E ele não queria estar longe. Nunca mais. Apenas a distância em falso entre as duas colunas de azulejos.  2. Sentei no sofá e esperei que algo acontecesse, mas o que vi fo...

Cenas de shopping

Gente pra lá, gente pra cá, os pais docemente conduzindo os carrinhos com os filhos, as mães orgulhosas dos maridos, os maridos orgulhosos das crias sonolentas embarcadas como pequenos astronautas em cápsulas espaciais, protegidas de tudo. Os pais de tênis, as mães de sandália baixa. Os pais de polo, as mães de calça apertada ou vestido. Os pais com o braço como a alça de uma xícara, as mães com as mãos entrelaçando o marido de modo a retê-lo o máximo possível. Os filhos dormindo ou correndo. Mas ainda não é isso. Vejam esse cara, por exemplo. Está todos os sábados no café da livraria. Uns 45 anos? Engenheiro civil, agora estuda direito porque resolveu fazer uma segunda graduação. Mede 1,80 metro, pele morena, cabelo grisalho. Raramente com a família. Senta e começa a conversar com outro homem mais velho, que passa a lhe explicar pormenorizadamente conceitos do direito que seriam muito áridos para qualquer pessoa, menos pra ele. Ocupam-se por meia hora. Depois levantam ao...