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Fragmentos

1. A conversa, o rosto contra os azulejos portugueses. Uma tarde funda na memória outra realidade, a realidade cede facilmente, e então o que vemos é sempre esse borrão de sonhos despedaçados.  A lembrança de que chorara. Sim, havia sido choro. No meio da tarde, pessoas indo e voltando, ele parado, os olhos vidrados num tempo futuro que havia se tornado passado de repente e que novamente saltara para a frente.   Subitamente calmo, como nos piores momentos da vida. Incapaz de levantar a voz, os gestos como que coagulados no dia. Restos de si para conjurar, fragmentos, cacos de mentiras. Era todo uma violência que irrompera nos últimos meses. Todo o amor.  Não disseram nada por muito tempo. Quis acender um cigarro, precisava fumar urgentemente, mas temia que isso o distraísse. E ele não queria estar longe. Nunca mais. Apenas a distância em falso entre as duas colunas de azulejos.  2. Sentei no sofá e esperei que algo acontecesse, mas o que vi fo...

Cenas de shopping

Gente pra lá, gente pra cá, os pais docemente conduzindo os carrinhos com os filhos, as mães orgulhosas dos maridos, os maridos orgulhosos das crias sonolentas embarcadas como pequenos astronautas em cápsulas espaciais, protegidas de tudo. Os pais de tênis, as mães de sandália baixa. Os pais de polo, as mães de calça apertada ou vestido. Os pais com o braço como a alça de uma xícara, as mães com as mãos entrelaçando o marido de modo a retê-lo o máximo possível. Os filhos dormindo ou correndo. Mas ainda não é isso. Vejam esse cara, por exemplo. Está todos os sábados no café da livraria. Uns 45 anos? Engenheiro civil, agora estuda direito porque resolveu fazer uma segunda graduação. Mede 1,80 metro, pele morena, cabelo grisalho. Raramente com a família. Senta e começa a conversar com outro homem mais velho, que passa a lhe explicar pormenorizadamente conceitos do direito que seriam muito áridos para qualquer pessoa, menos pra ele. Ocupam-se por meia hora. Depois levantam ao...

Lá estava ela

A mulher tinha os cabelos brancos, os olhos claros, sentou-se ao lado e depois de frente. Encarou-me. Tinha uns modos suaves, muito leves, como se emitisse sinais que demoravam a chegar até as mãos e ao rosto. Uma lentidão orgânica, uma falta de pressa, a certeza de que estava ali e não em outro lugar. Eu tenho os cabelos brancos desde os 23 anos. Espalharam-se primeiro aos poucos, depois foram se tornando o que são hoje, uma presença que define parte do que sou. Uso óculos de um modelo antigo, armação velha, e também tenho esses movimentos de gato preguiçoso que me fazem parecer mais ponderado do que devo ser.  Exatamente como a mulher sentada à minha frente.  Ela era bonita, disso me lembro bem. Que era bonita e me olhava com insistência. Tinha olhos azuis que fixava em mim de uma maneira que não esperava que uma mulher fizesse. Não lasciva, mas também não destituída de interesse sexual.  Tinha dúvida se era um flerte ou apenas me reconhecia de outro lu...

Um ano bom

O melhor a se fazer nem sempre é o melhor a se fazer, às vezes calha de ser bem o pior. Não nesse sentido negativo, de coisas ruins que sobrevêm e causam o mal-estar, ou de fatos que desagradem, mas o pior num modo de falar – o pior em contraposição a um melhor, sendo também o melhor não exatamente a melhor coisa que poderia acontecer na vida, mas a única coisa possível em dados contexto e circunstância. Isso é, de longe, uma noção que tomo de empréstimo de um autor cujo nome agora não lembro, como quase tudo que tenho lido. Leio e esqueço, leio e me interrogo: de que vale? Uma ninharia de palavras adquiridas a peso de ouro para as quais não encontro serventia, sequer à conversa de botequem podem comparacer.   Mas essa noção, curiosamente, restou: a de que as coisas não são piores nem melhores, mas coisas, e como coisas seguem em suspensão até que o tempo passe e disso resulte uma terceira ou quarta coisas, que é o sentido, sendo o sentido também muito escapadiço. ...

Brechó

Experimentar e usar uma roupa que não é a sua, vestir essa roupa estranha e levá-la a passeio. Só uma vez fui a um brechó. Pouco antes de viajar, precisava de uma camisa de frio, uma que se parecesse comigo, que fosse minha e estivesse de acordo com meu tamanho. Não encontrei. Eram ou largas demais ou muito curtas, nenhuma me cabia, nenhuma ao agrado. Mas levei uma blusa assim mesmo. Em casa deixei no guarda-roupa para que fosse tomando o gosto das outras roupas, todas velhas, todas compradas cinco ou mais anos antes. Como esta camisa preta de mangas longas que uso agora. Está cinza e se descostura em alguns pontos, mas já foi muito escura e tinha cheiro de novidade. Era bonita, gostava de vesti-la quase sempre, muita gente dizia que ficava bem e era assim que me sentia ao usá-la.  Desgastou-se, ficou como velha e já não combina com os ambientes fora da casa. Quando saímos, dizem que é uma roupa surrada, fazem chacota. Dizem: convém não estar assim tão desleix...

Teresa

Teresa era um nome antes de ser uma pessoa. Encontrei Teresa na rua. Atendia o celular e parecia irritada. Pediu que não olhasse muito porque já era tarde e tinha coisas a resolver, disse isso com um gesto de quem afasta algo desagradável. Teresa era morena de sol, a pele queimada, um tomara que caia e short apertado e cabelo preso com uma fivela de plástico rosa, uma tatuagem na coxa e os pés com marcas de chinela de dedo.   Teresa eram duas. Tarde descobri o que Teresa realmente queria, que era o que sempre quis Teresa. Teresa na verdade eram três. Uma criança, outra jovem e uma adulta, que se encontravam só de vez em quando. Teresa bebia e se punha a falar o que não compreendia, às vezes calhava de virar a cerveja direto da garrafa, emborcando o vidro e rindo ao mesmo tempo. Uma cena de novela, ela dizia. Teresa sempre dizia o que sabia, Teresa sempre cavava debaixo da pele e revolvia as unhas em procura de tesouro. Teresa era talvez mais do que podia conta...

Recado na porta

Tinha poucos minutos, não mais que dez. Usou de dois a três para fumar enquanto pensava numa ideia boa o bastante para estar no papel, depois sentou na cadeira e começou a dizer o que diria se dissesse algo, o que também não era lá tão novo assim. Pensou nos últimos acontecimentos: tinha parado de fumar, mas voltara. Tinha voltado a beber, mas parara. Tinha interrompido as idas ao cinema e as voltas de bicicleta e tudo que costumava fazer antes e também depois. Em suspenso mesmo os mergulhos no mar, as horas na areia da praia olhando os outros entrarem aos pares, mãos dadas. Um cachorro que passa etc.   Agora sofria no quarto, era dezembro e o calor matava. Olha o próprio corpo, em seguida passa a vista na lombada de um livro em cuja capa há pernas e braços entrelaçados contra um fundo branco no qual não se lê o nome do autor. Erotismo. Sente vontade de descrever tudo entre a porta de casa e a faixa de mar, tudo que encontrar no caminho, cada pequena lembrança...