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Variações sobre o mesmo tema

Fico com isso na cabeça de ir me servindo do próprio corpo, de ir afundando as unhas na carne e retirando camadas como se cortasse cebola, de ir mesmo até o sumo e lá deparar com nada, de voltar de mãos abanando porque sempre estive procurando, de estar como o menino a quem a mãe pedia que fosse até a mercearia e trouxesse isso e aquilo e de lá voltava só com a metade dos itens porque a outra metade tinha esquecido no caminho. Por trás disso está toda uma ideia enganosa de essência. Que levamos algo a algum lugar, que passeamos um punhado de noções muito charmosas e decentes a respeito da existência e do amor e de como as coisas se dão nesse intervalo entre vida e morte. Que temos  muita coisa própria, que cada parte de nós fala uma verdade pessoal que expressa exatamente quem somos.  Verdade: não temos nada. Não somos nada. Não testemunhamos nadica de nada, exceto o passar dos dias e a progressiva falência de tudo. Há quem veja nisso certo pessimismo, um gosto e...

Carta do mágico

Dizer no papel, em caneta e traço, é reler vagarosamente cada palavra e esperar que seu peso e sentido criem raízes. Escrevi isso um mês atrás. Era uma quinta, acordara triste e queria dizer o que não sabia, mas digitar era impossível. Então peguei caneta e bloco. Um antigo, enterrado na mochila. E rabisquei umas letras que depois eu mesmo tive dificuldades de entender. Eram garranchos, coisas das quais ia me desfazendo por necessidade, traços que se prolongavam uns nos outros, uns sobre os outros. Uma algaravia, mas era uma algaravia que criava ordem. Acho que os fiz assim exatamente para que não pudesse ler. Eram inteligíveis apenas no instante em que eram ditos.  Queria também que fossem palavras que fundassem outra coisa, outra vida. Palavras que criassem mundos, que instaurassem um tempo, que interrompessem e que inventassem, que fizessem mágica. Mas no fundo eram palavras.  Queria ser o mágico, alguém que deixasse de lado essa condição e passasse a outra, ...

Extraviado

Um homem se perdeu no mar. Entrou, não foi mais visto. Aeronaves sobrevoam, dão rasantes, barcos partem em busca de algo que possa levar a um lugar que não existe. O mar não fixa barreiras. Não se pode dizer que afundou, tampouco que está irremediavelmente perdido. A procura leva horas, amanhã será retomada logo cedo. Estarei dormindo ainda quando um grupo numeroso terá os olhos vidrados nas águas. A foto que estampa a reportagem do jornal é de um fim de tarde.  Noutro lugar, noutra parte, talvez um casal se beije olhando o mesmo mar.  A mesma paisagem repete-se ora como agonia, ora como sereno. Talvez não seja ainda o momento de perguntar quando ele virá. Se virá. E como virá. Inês é morta? Leio a manchete: desaparecido. Mar. Homem. E imediatamente me coloco a reunir sob o mesmo teto o conjunto indistinto de sentimentos que cada uma dessas palavras mobiliza. Um homem extraviado em pleno domingo. Tinha braços e pernas feitos para isso, os músculos meto...

Três palavras

Vi três palavras. Três, sim. Primeiro água, depois dinheiro e finalmente amor. Não sei se valem pela ordem ou se o que importa é o que cada uma significa separadamente, afinal as três encerram um mundo próprio. A vida de um modo diferente a depender de como apareçam. O ideal seria que pudéssemos escolher, mas a verdade é que quase nunca podemos.  Água pode querer dizer tanta coisa, de nascimento a renovação, mudança e mais fluxo na vida, mergulho e flutuação. Enfim, um monte de signo. Com qual fico? Gosto de fluxo. Neste ano vivi muito perto da água. Mergulhei e afundei. Ralei o corpo em pedras, mas também sarei. Gastei a pele com sol. Suei um bocado em travessias de bicicleta, estive no mar mais vezes do que nos outros 36 anos de vida. Foi um ano marinho, escuro mas solar, acidentado mas fluido. Feito o mar. Ora manso, ora arrebentação. Então é possível que essa palavra tenha, sim, alguma importância no ano que vai começar. O mar vai continuar como um elemento de for...

O que fazemos aos domingos

Aos domingos acordamos mais tarde certos de que as horas passarão lentamente. Confiamos nesse ritmo vagaroso, queremos que o tempo se estenda. Conversamos, e cada história se dilata, cada história é a continuação de outra. Detalhes e detalhes. Uma frase talvez desse cabo de tudo. Mas nunca soubemos dizer nada além da falta. Aos domingos tentamos remover uma mancha da roupa que nunca sai de fato. Aos domingos levamos o desamparo a passear. Também aos domingos tomamos mais café e gastamos mais tempo olhando a superfície das coisas de casa. Objetos que refletem nossa imagem. Se vamos passando na cozinha, é a geladeira. Se estamos na sala, é o resto de café. Se no banheiro, naturalmente é o espelho, mas o espelho é falso, tudo que mostra é aceno ao que já foi. Confiar no borrão esmaecido, na dança de luzes da máquina de lavar, na tela escura da TV ou numa carta de baralho retirada quando já é noite e estamos muito cansados para decidir sobre qualquer coisa.  Confiar...

Cascas

Leio aos tropeços, trechos saltados de obras, cacos de frases. Fragmentos, arestas, pontas soltas. Saio pouco, quase nada. Um vizinho canta, primeiro sucessos de novelas, discos internacionais com rostos de estrelas da TV estampados nas capas. Depois forró. Assobia cada canção, em seguida acompanha com grunhidos e batidinhas. Passa horas assim. Tento estabelecer um nexo entre cada coisa, mais ou menos como se montasse um mosaico. Música, pedaços de realidade, férias, a filha na sala vendo desenhos. O desenho preferido agora é outro: As lendas. Um grupo de crianças, fantasmas, caveiras de açúcar e um animal cuja fome não passa. A morte sempre presente, mas uma morte festiva. Nunca o luto católico que aprendi na escola. A morte é alegre.  Um fantasma chama-se Don Andrés. Teodora é uma menina que vive grudada no celular. Gosto das caveirinhas. Elas se chamam Finado e Moribunda. O desenho acaba. Peço que volte, mas ela agora quer outro. Começo a ler uma página ao ac...

Um sonho

No último sonho me despia no sofá para um casal de idosos que perguntava com insistência se seria capaz de felicidade. Assim mesmo, como se a felicidade fosse uma faculdade, uma habilidade mediante a qual nos tornamos mais ou menos contentes com aquilo que fazemos da vida. Eu era feliz, sim, mas não sabia se tinha esse atributo. Além da felicidade, eu seria capaz de tornar outra pessoa feliz? Acho que esse era o objetivo da pergunta, não tanto interrogar minha própria felicidade, mas saber se ela se estendia a outra pessoa, se poderia alcançar o alheio. Em última instância, se podia atravessar uma fronteira. Tinha acabado de acordar, estava nu, coberto por um lençol. Era uma casa estranha com pessoas estranhas. Apenas um rosto era conhecido. Todos estavam vestidos. De repente me vi sozinho com o casal. A mulher falava, o homem observava. Um olhar judicioso de quem mede cada centímetro da superfície perscrutada. Trocamos poucas palavras. Narrei episódios da minha vi...