Fico com isso na cabeça de ir
me servindo do próprio corpo, de ir afundando as unhas na carne e retirando
camadas como se cortasse cebola, de ir mesmo até o sumo e lá deparar com nada, de voltar de mãos abanando porque sempre estive procurando, de estar como o menino a quem a mãe pedia que fosse até a mercearia e trouxesse isso e aquilo e de lá voltava só com a metade dos itens porque a outra metade tinha esquecido no caminho.
Por trás disso está toda uma ideia enganosa de
essência. Que levamos algo a algum lugar, que passeamos um punhado de noções muito charmosas e decentes a respeito da existência e do amor e de como as coisas se dão nesse intervalo entre vida e morte. Que temos muita coisa própria,
que cada parte de nós fala uma verdade pessoal que expressa exatamente quem somos.
Verdade: não temos
nada. Não somos nada. Não testemunhamos nadica de nada, exceto o passar dos dias e a progressiva falência de tudo.
Há quem veja nisso certo pessimismo, um gosto especial por sentir-se amargurado, um filtro que obscurece em vez de clarear, que na vida há muito do que tirar proveito, que os filhos preenchem nossas faltas, que as crises vêm e vão e isso é mais do que natural. Vão todos pra puta que pariu.
Hoje fui me procurando. Acordei, e o humor oscilou 90 graus em duas horas. De bem pra mal, depois pra bem e, em seguida, pra mal novamente, até que decidi que faria assim: estivesse como fosse, iria começar a escrever imediatamente e dizer o que se passava. E o que se passava, o que se passa, era isto. Suspeito que esteja com depressão. Suspeito que a felicidade não exista senão em doses homeopáticas. Suspeito que nada nem ninguém possa fazer qualquer coisa por mim agora. Suspeito que esteja cansado de dizer sempre as mesmas coisas. Suspeito que, ao descascar toda a cebola, talvez eu encontre algo que me desagrade.
Esse algo serei eu?
Estava assim encurralado. Sem ler, queria escrever. Sem escrever, queria ler. Em casa, queria estar na rua. De volta ao trabalho, queria as férias. Sempre recusando o estado das coisas presente, sempre pensando no potencial estado de felicidade a meu alcance caso estivesse em lugar x fazendo a tarefa y.
Insatisfeito, vaguei pelos quartos da casa, não como o Ulisses de Luciano Huck, atado ao mastro e com os ouvidos tapados para que não ouvisse o canto das sereias. Eu queria ouvir cada uma das sereias. Aquela, esta, essa outra. Queria estar tentado a mergulhar no mar e tudo terminar ali, num mergulho.
Acendi um cigarro, abri a geladeira e, a pior das
vaidades, comecei a escrever. Tive vergonha no começo, mas depois foi passando até restar só o despudor. O medo do ridículo apenas uma chama de vela tremeluzindo sempre que dava um vento mais forte.
Escrevi, pela ordem, sobre algo que não lembro e depois sobre o atleta que desapareceu no mar de Iracema. O mesmo mar onde mergulho toda semana, às segundas e às vezes na quinta. Esse caso me pegou. Até sonhei que encontrava o corpo do homem na praia depois de horas procurando. Estava sozinho. Eu via de longe o homem emborcado na areia, corria para desvirá-lo. Tinha vida? Não tinha. Nem preciso dizer que, quando mudei o corpo de lugar, o homem era eu mesmo. Era meu rosto que via.
Talvez por isso não tenha ido à praia hoje. Por isso e por outras razões também, mas especialmente porque tive medo de entrar no mar e não voltar. Resolvi ficar em casa empenhado em minhas próprias buscas, catando pistas do meu corpo levado pelas correntes a todos os cantos. Por onde andará? Por onde andarei?
Parei de me buscar no final da manhã. Estava exausto. O trabalho de encontrar, o trabalho de achar, o trabalho
de refazer tudo, o trabalho de construir, o trabalho de
demolir, o trabalho de projetar. O trabalho de dizer o trabalho de sentir.
Antes pudéssemos fazer assim. Seria uma traquinagem, eu sei, mas valeria a pena. A gente ia passando pela rua e, sem avisar, esqueceríamos a nós mesmos num banco. Como uma bolsa ou um livro que enfiamos numa caixa e esperamos que um
estranho o encontre e se agrade. E quem sabe até o leia na cama antes de dormir sob a luz de um abajur. E em seguida adormeça sentindo o gosto do nosso corpo. E eventualmente sonhe com um amor de sonho e de vida.
Antes o sabor do corpo na boca
de um estranho que andar sem saber aonde vamos. Antes isso que ir de um canto a outro levado pelas mãos de Iracema, já sem vida, o corpo uma embarcação feita para afundar sob o próprio peso.
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