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Uma ignorância

Então porque considerou que era tudo muito metalinguístico, achou que deveria falar do mercado lá fora, a rua, o leite e a reforma na bodega, que agora tinha prateleiras limpas para as frutas e verduras, não mais o arranjo de arame enferrujado, mas gavetas em madeira escura que pareciam mais higiênicas. Tinha de sair pra procurar um lugar. Levou meia hora assistindo TV, outra para decidir levantar da cama, mais alguns minutos calculando se preparava o café em casa ou comia na padaria. Pequenas decisões que incidem sobre o andamento do dia como gotas de chuva num balde d ’ água. Livros empilhados na mesa, James Wood e Milton Hatoum, os dois que agora precisava ler com urgência, um porque falava tão perto de tudo que queria dizer, a coisa mais próxima da vida, e o outro porque o fazia prender a respiração ao imaginar a criança fora do abraço da mãe. Doía, um relato triste e cheio de força. E logo um pensamento estúpido que se intromete: tinha a impressão de que engordara no...

Intuição da água

A sensação de que todos vivem mas a vida mesmo acontece noutro canto, que não se pode apanhá-la, o vexame de procurar e não achar, a suspeita de que caminhamos na direção errada, a intuição da água, a dúvida sobre o número certo de colheres de açúcar no café, o abismo de todas as horas do dia à disposição, o marasmo de semanas inteiras pela frente, a aflição de já contar 37 mas ainda faltar tanto, a tristeza de estar a meio caminho de sabe-se deus o quê. Ia dizendo tudo como pinceladas num quadro. Sentado, passava de meio-dia. No caderno as tarefas que anotara para a terça: nenhuma cumprida até agora. Todas por fazer. Se não tinha tempo, desejava tempo. Se tinha, desejava não tê-lo tão fartamente.   E ainda restava muito, ainda tão distante de tudo. Leu em algum lugar que Faulkner escreveu para se vingar de algo. Um livro como uma pedra atirada contra a vidraça. É preciso ter ódio, e ódio ele não tinha ou tinha pouco, quase nada que servisse de fermento para algo que ...

Aparições

A persistência do número 11. Talvez haja algo de cabalístico, um número que se segue a outro em repetição ao longo do dia, uma placa de carro, as horas do relógio, uma temperatura de geladeira, o tempo de filme etc. A sucessão e a circularidade. E essa tentativa frouxa de entender o número, um e um, o algarismo da chamada da escola, um endereço, a data em que algo acontece na vida. Pela letra C, quase sempre caía no 11. Já fui 13 e até 6 e 7, mas o mais comum era que fosse 11. Uma professora brincou: lá vem o 11. De tanto me acostumar, acabei levando pra vida e agora o número me acompanha sempre. Enxergo em todo canto. Até o dia em que vi que Otto tem tatuado na mão: 1111. Uma dupla de onze, que seriam referência a algum portal aberto periodicamente em algum lugar do mundo. Coisa boba, esotérica, tanto quanto tentar adivinhar sentido no que não há. A legibilidade do mundo é um gesto arbitrário. Não fosse a repetição, não fosse a persistência, não fossem as presença...

Revisão

Revi tudo, do começo ao fim, e não entendi nada. Pior, estava feliz por não haver entendido nada, apenas uma sucessão de fatos enroscados noutros fatos. E entre uma coisa e outra os elos incompreensíveis, as conexões improváveis, as rotas impensadas, os desvios que assumimos como naturais depois que acontecem. Dava risada olhando tudo, admirava-me que a vida fosse tão possível em tão péssimas condições. Mas era isso, os desvios.  Talvez esteja nublado, talvez turvo, talvez não diga coisa com coisa ultimamente, quando sobretudo as ideias clareiam e tudo o mais é límpido, céu azul etc. Revi, e não queria mesmo rever, passar em revista, fazer esse trabalho de olhar à distância, como se empoleirado num morro ou algo assim de onde alcançaria até o mais longe do tempo. 

Rasurar, reescrever

Resolveu anotar tudo, cada atividade. Amanhã começaria algo novo, por exemplo. Depois sairia. Depois leitura e café. Depois um espaço aberto a ser preenchido por qualquer coisa. Nunca a fixação de escrever, registrar cada pormenor e deixar tudo grafado. Como se memorizar o futuro antes de acontecer. Como se controlar o tempo e nisso não estar à mercê do descaminho. Mas tudo também tão volátil, palavras em um caderno, coisas ditas e desditas. Coisas que iam e voltavam. Contra tudo que passa decidiu escrever ainda mais firme, letra em pé, tinta preta. Irrevogável. Escreveu que almoçaria e de fato almoçou, em seguida foi ao mercado e trocou a lata de leite vencida por outra no prazo, tudo antes previsto no próprio caderno de anotações. Ainda a mania de não verificar os dados de validade.  Passava por idiota, mas era apenas desatento. Pediu que trocassem. Voltou com outra sacola cheia de maracujás. Era o melhor suco. O travo na bochecha, a acidez bem dosada com ce...

Fotografia

Fotografa o interior de apartamentos. Aquele, por exemplo. Um gato, sofá, discos, cinzeiro e uns poucos livros na sala. Cadeira e mesa. Abajur, jogos de montar e cartas. Objetos não falam o que sabem, pensou. Calam o que testemunham, essas pequenas guerras travadas no curso de poucas horas.  Tinha lido que expressavam uma relação entre coisa e palavra, mas não sabia se concordava com que um mundo e outro andassem juntos, de mãos dadas, som e sentido. Pra ele objetos continuavam pertencendo ao inanimado, signos em rotação etc. Olhava, e uma cadeira não passava de uma cadeira, uma mesa, uma mesa, uma estante também e por aí vai.  Que os objetos emanassem uma áurea e que essa áurea denunciasse este ou aquele espírito de quem vive na casa, disso não tinha dúvida. Mas como? Que propriedade torna as coisas seres que pensam uma outra sensibilidade? Achava isso um grande exagero, coisa de quem excedia o campo da reflexão.  E se algo o aborrece é excesso de pensament...

Intervalo

Escrevo num interregno, um tempo em suspenso que não parece tempo nenhum. Hoje, primeiro dia, estive às voltas com horas vazias, horas cuja consistência carecia de algo que as validasse. Dia e noite alheados a tudo. Li, basicamente. E escrevo agora mais por insistência que por gosto. Passa das onze da noite, horário em que normalmente chegaria cansado do trabalho e me esticaria no chão até adormecer vendo televisão. Não tenho sono. Do outro lado do mundo é madrugada. O romance fala da separação entre um filho e uma mãe que se apaixona por um artista. O pai e marido vai embora, atravessado por uma dor sem nome. O filho o acompanha, a contragosto. Mudam-se para Brasília, uma cidade que não conheço. Pai e filho estranhando-se, mas cada vez mais necessitados um do outro para suprir a falta da mãe e esposa. Dois desenraizados num lugar de seres volantes. Amanhã sairei mais cedo. Talvez faça sol. Hoje amanheceu nublado, um tempo frio que não me agrada. Um pano de fundo de trist...