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Equilibrista

Inflação de superlua e asteroides que vão passar raspando na terra no próximo fim de semana e excesso de eventos atípicos que se tornam corriqueiros de uma hora para outra sem aviso prévio nem explicação. Uma falta ampliada que salta e engole tudo. Opacidade. Fiquei de responder e deixei pra lá. E agora esqueci o que tinha ensaiado como resposta. De modo que tenho apenas as palavras do dia, nada rebuscado nem refletido. Impressões de agora. Dois caminhos se bifurcam e não se encontram. Velocidades são assim mesmo: as pessoas se ultrapassam no tempo. Umas correm mais que outras. Outras olham para os lados ou pra frente. Eu olho pros pés e pra cima. Procuro ajuda no teto do bar onde agora peço mais uma cerveja. Eu não deveria. O deserto está florido. Cheio de um rosa atapetado e ao fundo as montanhas numa coloração indefinida entre cinza e verde claro. Lembro quando o deserto costumava ser árido e infértil. Duas pessoas caminham na mesma direção mas em sentidos opos...

Notas animálicas iii

E a terceira parte, como a terceira parte de qualquer coisa, não encerra nem elucida, mas amplia a falta. Na literatura e no cinema, a falta é o leitmotiv. Está em tudo e em todo lugar. A falta empurra protagonistas para outra geografia, para outro mundo, para outra dimensão, para outro corpo etc. A falta de amor, natureza, amizade, dinheiro e sexo, a falta de braços, a falta de dentes, a falta de pau e de buceta, a falta de cabelos, a falta de sentido e a falta de falta. A falta de falta é das piores: olha-se ao redor, e nada está faltando. Está tudo no lugar: eu estou aqui, ela ou ele está ali, a casa está arrumada e os lençóis, lavados, as passagens para a viagem compradas e o cachorro banhado. As contas pagas e a pia, sequinha. Pesco uma conversa de ouvido: tudo que eu tenho é tão valioso e importante. E cita como exemplos a casa e o carro, mas também casamento e filhos e a sensação de finalmente haver encontrado paz. Segue-se uma breve discussão sobre felicidade ...

Notas animálicas ii

E isso tudo tem a ver com não saber/não conhecer. Notas etc. O livro novo: "O Pai Morto". Donald Banthelme. Notas novamente. Uma carta. Uma esquina. Um cheiro esquisito mas ainda interessante. Um rosto que se perdeu no tempo depois de tudo e agora se diverte ao virar uma fumaça fugidia. Perfumes. Não saber/não conhecer praticamente define não apenas a razão pela qual alguém começa a escrever, como também constitui um dos motivos por que estamos/não estamos aqui: não sabemos, tampouco conhecemos. E, mesmo assim, tudo se encaixa e cria essa ilusão fantástica de que há uma narrativa se desenrolando sob o nosso nariz quando, na verdade, o que acontece é que alguém deixou a vitrola na sala tocando uma música qualquer e foi pra rua apanhar borboletas um dia antes do Natal e não voltou mais.

Notas animálicas

Estavam conversando sobre perfumes quando ela falou notas animálicas, foi pesquisar na internet, mas desistiu em seguida. Não queria saber, queria imaginar.  É sempre melhor. Não o que acontece, mas o que poderia acontecer. Mas sobre isso não conversaram muito tempo, apenas perfumes e também o episódio de uma série que ela achava incrível e ele não, de modo que não avançaram no papo. Notas animálicas? Como soavam? Fezes, suor, excrescências de animais. A secreção como uma nota dissonante e de gosto duvidoso, mas essencial. A ideia de essência, uma fragrância a que se adiciona uma substância ou princípio ativo contrário. O baile perfumado de aromas que não se misturam. Para fixar bem na pele, ela explicou, é preciso adicionar uma nota animálica a qualquer perfume. Jasmins e fezes. Alfazema e suor. Um artificialismo que não se sustenta senão com o auxílio dos fluidos básicos. Um cheiro de fora que se imiscui ao de dentro para formar um cheiro único. Nota...

Caboclismo moderno

Desde que se entenda que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra e assim por diante, é impossível se confundir a respeito das diferenças e semelhanças entre uma coisa – jornalismo - e outra coisa – publicidade, pop-ups e afins. Esse preâmbulo nada teorético impõe-se a quem quer que se aventure a analisar um produto que aqui vou chamar de X. X apresenta-se como experiência jornalística. Faz uso de reportagens, artigos e ensaios, mostra-se atento aos movimentos da cidade F. e investe pesado nas mídias sociais, como qualquer veículo de comunicação faz hoje, além de destinar ampla fatia de dinheiro para vender-se nos veículos tradicionais de imprensa.   Ocorre que X não é um jornal, tampouco um site noticioso, menos ainda uma plataforma desinteressada de narrativas cuja liberdade de publicação vai até onde a vista alcança. X é um híbrido difícil de definir. A rrisco a dizer que X é um modelo de negócios travestido de hub de narrativas, para usar uma expressão da m...

Espera, silêncio, contenção

De vez em quando é preciso fotografar a cidade num instantâneo curioso, engraçado, não porque acaba de passar um vendedor de morangos de bicicleta, morangos de bicicleta, repito, mas porque todas as antenas estão ligadas nos dois jogos de futebol dos dois times locais, o trânsito flui, as pessoas se enfiaram em casa, na janela em frente onde normalmente não há nada além dos apetrechos de cozinha surgiu uma bandeira de time, as ruas se esvaziaram e não se ouve nada além de um ou outro grito de gol abreviado porque um atacante entrou em impedimento ou porque a bola bateu na trave. É curiosa a imagem de uma cidade assim, suspensa, uma cidade tão violenta, desordenada, subitamente tão cordial, calada, até ensimesmada, como se à espera de uma visita importante, por isso mesmo resolve adotar comportamentos diferentes dos habituais, senta à mesa com a família, usa guardanapo e pede licença antes de recolher os pratos. Aqui, onde as pessoas costumam buzinar no instante seguinte a...

Linguagem morta-viva

“A poesia de uma álgebra desconhecida” é a poesia desconhecida ou a álgebra de uma poesia desconhecida? Desconhece-se o que, afinal, a poesia ou álgebra, mais uma que outra, ou ambas em porções iguais? Sabe-se nada do que vai adiante do nariz, ou apenas no caso da poesia é que o desconhecimento se mostra potencialmente relevante? Contentar-se com o que se sabe é sinal de que atingimos o gozo, estamos satisfeitos com a relação custo/benefício ou é meramente uma acomodação de desejos tendo em vista que estar à procura da poesia de uma álgebra desconhecida no dia a dia, sem essa retórica surrealista, traduz-se mais por dor e sofrimento e menos por encanto e paixão?  São perguntas que não se respondem numa tarde de sábado em Fortaleza, enquanto a cidade silencia e da varanda de casa consigo enxergar a tampa do estádio de futebol onde agora dois times se esbatem na luta por uma vaga na divisão de acesso. De todo modo, não custa tentar entender as maneiras de se assusta...