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Postagens

A bolha

A dúvida é descobrir se a gente vive numa bolha, não na vida de verdade, essa vida real de compras, farmácia e beijo de dormir. Falo da vida virtual, a das fotos estudadas, postagens e coisa e tal. Se, dentre as coisas que lemos ou vemos, há uma seta indicando exatamente que o caminho é aquele e não outro, um propósito ou mão invisível. Eis a bolha: a linha mestra de uma vontade externa.   A bolha consiste na empatia ou na consonância? É a repetição dos gostos? A homogeneidade das falas? Falta assimetria? Sobram encaixes? Os algoritmos estão chegando. Eu gostaria de entender a bolha. O que faz, como atua, de que modo seleciona os amigos e escolhe as postagens mais bacanas para exibir na minha timeline durante um dia inteiro de conversas. Acho que a bolha, por ser uma bolha, não tem feito um bom trabalho. Me mostra coisas que não quero ver e mensagens que não quero ler. A bolha tem falhado. Se falha, é humana? Não sei responder. Apenas descon...

Aprendizado

Tudo para no final entender o mais básico: não importa o que você esteja fazendo nem o que diabos esteja pilotando, se um jato ou uma bicicleta montada com peças encontradas no ferro-velho. A mesma carcaça orgânica falará sempre o que tiver de falar e agirá sempre do modo que julgar mais natural.   Há o adereço, o penduricalho, as roupas, os telefones, tudo que recobre o corpo para nos esconder. E há o corpo nu, que se mostra mais cedo ou mais tarde. É uma dessas leis da natureza que alguém esqueceu de escrever. O que novamente me faz pensar: as coisas mais importantes dão trabalho. É bom que, mesmo depois da Siri e do miojo sabor churrasco, continue sendo assim.

Números

Tinha cinco ou seis minutos antes do fim, após o que levantaria da cadeira, tomaria banho e vestiria a roupa para o trabalho, uma jornada de cinco ou seis horas ao longo das quais cumprimentaria cinco ou seis pessoas mais efusivamente e as demais com um aperto de mãos ou até um abraço, mas não tão apertado. Passado esse tempo curto, cinco ou seis minutos, nada mais que isso, desligaria as conexões com o mundo, andaria pela calçada no fim da tarde por menos de uma hora e observaria mudanças no tempo sem reduzir o passo. O ritmo é sagrado, dizia a si mesmo. Caminhar no mesmo ritmo leva a muito longe. A qualquer lugar.  Então foram cinco ou seis objetos pendurados na copa de uma árvore perto da oficina mecânica onde trabalha um velhinho escuro que está sempre apertando parafusos com uma expressão que não é enfado, mas alegria.  Cinco ou seis dias sem comer nem beber - conseguiria? Presumiu que não, um desafio e tanto. Melhor passar. Não se impunha nada que não p...

Ressaca

Antes de ontem o mar estava encrespado. Em frente ao Estoril, a antiga Vila Morena, na Praia de Iracema, a ressaca formou um mosaico de matéria orgânica e inorgânica. Restos de embarcações, fragmentos de alvenaria e carcaças de animais foram cuspidos de volta pela força das ondas a despeito da parede de pedras dispostas a fim de conter o bravio das águas. Quem foi ao calçadão viu fragmentos do Mara Hope misturados a conchas e esqueletos de peixes mortos há muito tempo. Viu blocos de cimento, algas e plástico flutuante finalmente aportar em terra depois de meses ou anos navegando pra lá e pra cá. Espalhadas, as peças constituíam um quebra-cabeças de cuja resposta a cidade depende para seguir adiante. É como tentar enxergar na borra do despojo recusado pelo mar algum futuro para Fortaleza. Nele, a depender do que cada um queira pinçar, se pedra, madeira ou coisa viva, o desenho no horizonte se modifica como essas nuvenzinhas que se desfazem mal a olhamos.  Minha cidad...

Anos-luz

Às vezes a gente se sente um pouco abismado quando as bússolas param sem explicação. É como ir ao supermercado sem a lista de compras e tentar lembrar cada item que falta em casa. Pelas prateleiras, vai tateando produtos e rótulos até se convencer de que tem tudo à mão. Mas sempre falta, e é essa falta inexplicável que aflige.  Duvido que alguém hoje, além de pessoas muito ciosas do próprio corpo e das próprias ideias, saiba ao certo para onde estão empurrando o seu carrinho de compras. Se em círculos ou em linha reta. Isso não é muito triste, é apenas como as coisas são. Triste mesmo é a notícia de que nenhuma das mais de 200 meninas sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram vai ser encontrada um dia. Triste é imaginar, por um segundo sequer, o que essas meninas sofreram ou sofrem. Triste é conciliar o relativo bem-estar de parte da humanidade, gozando tudo que o engenho humano é capaz de inventar, com o assassinato em massa de garotinhas. Um dia todos nós vamos ter de...

Entretecer/entristecer/entreter

Entreter é um vício bem bacana, do tipo recomendado para crianças e adultos, mas talvez principalmente para adultos, já que homens e mulheres crescidos parecem ter trocado de posição com os menorzinhos. Agora até as roupas servem a ambos. Cada frase e notícia e história embalada no invólucro do entretenimento é uma delícia de sonho que torna abominável cada notícia ou história ou frase servida sem a camada polvilhada de doçura. Sem entretenimento tudo é tão chato, tão débil, tão desafortunadamente desinteressante, tão arduamente difícil de percorrer. Imaginem a aridez de um livro em cujo centro não esteja a preocupação de divertir e entreter, fazendo as horas passarem com essa sensação agradável de que já não precisamos decodificar nada, tudo é claro e até as sombras encontradas no caminho são apenas a paisagem artificialmente sugestiva de dificuldades nunca realizadas. Triste da notícia ou do homem ou da vida que não almeje também ou principalmente o divertimento. Triste de ...

Abismo

Até hoje não entendo aquele fosso do desenho do He-man, uma queda livre, uma lonjura sem tamanho, um cânion de onde ninguém saía, tampouco caía. Num desenho infantil dificilmente uma pessoa, ainda que vilã, seria castigada tão cruelmente assim. Mas a queda estava lá, parada, a meter medo. O fosso foi minha primeira experiência com o infinito. Antes de haver deus, havia a queda livre. A ideia de algo tão fundo que, mesmo que passasse a vida inteira caindo, jamais chegaria ao final. O tempo suspenso. Daí que fosse inapropriado falar simplesmente final. Era mais um despencar contínuo solitário, uniforme e inapelavelmente vertical.  Pensando bem, até que não seria ruim. A eternidade em queda. Um tipo especial de inferno. Um inferno pras crianças malcriadas. O He-Man gostava das lições de moral ao fim de cada episódio. Começava assim: na história de hoje, nós aprendemos... Assisti-lo, logo, pressupunha um evangelho: amizade, respeito, camaradagem. A lista de boas a...