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Aprendizado

Tô convencida de que uma parte do meu aprendizado é acreditar que tudo é ruim e nada do que faça terá serventia algum dia, o que é libertador, pensem no desespero que é essa pressão de ficar à espera de que algo aconteça, algo mágico, uma volta inteira no parafuso, um passo de dança, quase como na 5ª série, quando a gente esperava que o garoto falasse com a gente o ano inteiro e o garoto ficava lá, não falava, então o ano acabava e nada tinha acontecido, apenas os garotos errados tinham puxado conversa.   Sim, agora é diferente, como sei que não farei nada, e não duvido da visão porque foi até hoje a coisa mais vívida que já sonhei, posso me dar ao luxo de fazer exatamente o oposto, ou seja, de simplesmente ir fazendo sem a pressão que falei. É, embora esteja predestinada a não ir muito longe, a dar voos rasantes de fôlego curto que talvez sequer sejam captados nos sonares e outros aparelhos que registram os objetos que emitem energia enquanto se movem, tudo isso me le...

Enquanto via televisão

E antes de sair disse só mais uma coisa, e foi como se essa coisa aparentemente banal anulasse todo o resto. Foi exatamente assim, a única coisa que importava exposta ali, como ao acaso, depositada ou largada sem rigor, uma peça extraviada de uma nave espacial. É só isso que tenho pra falar, concluiu, talvez num tom exageradamente teatral, talvez a sério, o acréscimo que punha tudo a perder. Basta que uma frase mal compreendida ganhe vida e então tudo está por um fio. Ficou calado, esteve calado por todo esse tempo sem saber por que permanecia calado ainda que tudo em redor o convidasse e mesmo o intimasse a falar, a fornecer informações sobre si mesmo que depois seriam usadas para compor um perfil. Era isso, as pessoas gostam de se assegurar de que estão falando com alguém cujo perfil conhecem e não com um estranho que a qualquer momento pode acrescentar um significado imperceptível ao final de uma frase, pondo tudo a perder. Não entendia por que apenas ao fim de tantas frases é...

Dicionário

Um parágrafo  Que comece dizendo o que não sabia e termine por anunciar uma certeza antiga.  Uma frase  Sincera, curta, um pouco desajustada, dessas que fingem seguir o roteiro mas, lá pelas tantas, quando tudo levava a crer que cumpriria o trajeto estudado, muda e, decidida, salta pontuações e declara, sem meias palavras, que não sabe aonde vai e pergunta as horas a um homem distraído na parada do ônibus, que responde: quinze para as cinco, e eu também não sei.  Uma margem  Erro e acerto ao final se equivalem, mas sem alterar o resultado, que nunca se adivinha, nunca mesmo. Uma previsão  Coisas que fatalmente acontecem são as menos previsíveis e as que nunca acontecem são as mais previsíveis.  Um temor  Reler o que escreve e descobrir que sempre esteve certo, mas pelas razões erradas, ou errado, pelas razões certas.  Uma alegria  Quando o concerto ordinário das ações cotidianas parece realmente isso...

Iracema abre o voto

Iracema anunciou ao aracati: votaria no candidato da situação, esse de sorriso largo e bochecha esburacada. O candidato que planeja trazer mais peixes à areia e fundar um oásis na Praia Mansa, inaugurando a modernidade na província do Siará Grande. É o melhor, acredita a índia, alisando mechas dos cabelos recém-pintados de louro-abóbora. E talvez tenha razão. Mas há também a chance de que não tenha. É fim de tarde na taba.  Iracema ensaia o discurso debaixo da mangueira. Tem medo de que seja mal interpretada entre índios mais esclarecidos. Contrariada, aceita correr o risco. A língua do povo é veneno. O que dirão se descobrirem que está do mesmo lado da tribo dos Ghomez? Nunca mais as miçangas vendem, os discos fazem sucesso, os shows lotam.  Como um vento soprando entre as árvores, ouve alguém lhe dizer : votar no auxiliar do cacique? O que o cacique fez pela cultura da aldeia? E o que diz sobre a matança, tornada rotina? E os irmãos do cacique? Como aceitar suas alianç...

Pontos para cada

Ponto 1.  Que acaso danado esse de ir passando na rua e na outra calçada do lado oposto de repente outra pessoa também caminhar em sentido contrário e num acaso ainda menos previsível tropeçar ou não. E, num segundo, nós chegarmos à mesma e única conclusão, que teria sido melhor deixar para mais tarde. Ponto 2. Um cara chegou e disse: puxa vida, isso aqui está estranho. Tá falando da festa? Sim, da festa. Tá mesmo. Ninguém tá dançando. Ninguém se mexe. Todo mundo parado. Talvez porque não esteja tocando música nenhuma. Ponto 3. O terceiro ponto que tinha pra dizer é que, antes de chegar no segundo ponto, já sabia que não haveria um terceiro e, caso houvesse, seria mais uma energia inercial, esse movimento que empurra não porque pretenda seguir adiante, mas porque já não consegue parar. Talvez o nome disso seja outro, ouviu o amigo dizer. 

Outra luta

Há três semanas, logo quando entrei de férias, consegui terminar “Um outro amor”, do Karl Ove Knausgard, o segundo volume de seis que integram a série épica “Minha luta”. Havia começado três meses atrás, mas a correria da gravidez da minha esposa e uma mudança de apartamento acabaram se impondo na rotina. Fui deixando o livro pra trás, mas sem substituí-lo por outro. De alguma maneira, sentia que não poderia avançar se não terminasse de ler Karl Ove.    “Um outro amor” tem 592 páginas. “A morte do pai”, o primeiro livro, tem 512. Os seis volumes, somados, têm mais de três mil páginas. É uma empreitada e tanto percorrê-los, principalmente agora, com tantas contas e gadgets requerendo nossa atenção a todo instante enquanto o passarinho assobia a intervalos regulares indicando que uma nova mensagem nos espera.  E quais as garantias que, ao final do livro, uma recompensa à altura do esforço despendido nos aguarda, como o pote de ouro do outro lado do arco-íris...