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Parágrafo único

Um último e dispensável parágrafo diz respeito a todos os parágrafos anteriores, ou seja, relaciona-se tanto à felicidade quanto ao modo como o tema aparece de forma esquiva logo abaixo, com indicações claras de que, ainda que estejamos falando há milênios sobre um mesmo assunto, o que fica evidente é o seguinte: o que está ao alcance de qualquer um é unicamente cavar e continuar cavando e no esforço de cavar danificar mãos e cegar as ferramentas e, a despeito disso, continuar, mesmo quando as escoras ameaçarem vergar sob o peso da areia que foi retirada do buraco e depositada um pouco acima das nossas cabeças, forçando o teto e estreitando corredores. Mesmo nessas horas, abrir buracos na terra e esperar que de lá saltem coelhos ou elefantes ou finalmente aquela criatura mágica que estamos procurando faz tempo e que certamente nos fará felizes é tudo que de fato interessa.  

"Quem vive sem utopias vive um pouco sem razão"

O POVO – A Revolução dos Cravos, comemorada recentemente, melhora a disposição dos portugueses para encarar o cenário de crise no país e na Europa? Valter Hugo Mãe – A Revolução dos Cravos é uma das datas mais dignas da nossa história. Acabar com uma ditadura é basilar em todos os lugares do mundo. E foi isso que aconteceu há 40 anos. O meu respeito pelo 25 de Abril (de 1974) é absoluto. A crise é ótima para todos os totalitarismos, todos os cretinismos, todos os despotismos e, se quiser até uma palavra que acho que nunca disse publicamente, para todos os “filhadaputismos”. Os 40 anos são efetivamente uma ajuda para que as pessoas percebam que há uma construção, que é a democracia, que recuou muito nos dois últimos governos, sobretudo neste governo que agora está no poder e que é um grandessíssimo monte de “merda”.    OP - Como você vê a construção de uma nova hegemonia alemã no continente? VHM - É assustador. É muito claro que a Europa neste momento está sendo ...

Onda

Agora estou tentando me acostumar. Uma das paredes é verde, as demais de uma brancura desconcertante. O vento é mais forte e assobia ao abrir a porta. A rua, ao contrário da outra, é silenciosa de noite e ruidosa de manhã. A garagem da empresa de ônibus e as árvores do parque ficaram pra trás. E as formigas também, embora ninguém tenha saudades delas. Lembro de uma vez. Éramos um grupo de amigos bebendo na praia no final da tarde. De repente anoitece, e algumas meninas vão embora. Eu resolvo ficar. Entro no mar depois de decidir que não estava tão bêbado assim. Estava. Flutuo no mar, não toco o chão com meus pés. A água é morna. Estou sozinho, a sensação é agradável, mas também triste. O que acontece se avançar um pouco mar adentro: avanço. Uma onda empurra pra longe. A tontura passa. Meus pés voltam a tocar o chão arenoso do fundo da praia. Uma água-viva se enrosca no meu dedo. Queima.   Tenho saudades do supermercado e da vizinhança. Estou cada dia mais longe, mas nunca ...

Perspectiva

Cena .  Outra solução possível é a descrição extrema de tudo que vemos: portas, janelas, cortinas, cheiros, texturas, sentimentos, pessoas, vento, qualidade da imagem da televisão durante uma chuva mais forte, cansaço, rugas, pregas, dores lombares, suco de laranja e luzes noturnas, suor e gás do refrigerante, a curva das costas e o odor do cabelo embaraçado. Outra alternativa é simplesmente não se importar e ir em frente, mas logo chegamos adiante e o trecho que parecia distante está agora bem debaixo dos nossos pés e o que devemos fazer já não parece um retrato do futuro que não chegou. O que está adiante é mais como uma carta enfiada sob a porta ou uma dessas pessoas que julgamos conhecer, mas que no fundo é alguém com quem trocamos duas ou três palavras em circunstâncias improváveis e que daquele momento em diante ficou retida pra sempre num vão cioso da memória. Uma terceira e última possibilidade é, esgotadas todas as tentativas, das mais razoáveis às menos, vo...

Mensagem para você

Senhor, Este não é mais um email inútil, como pode ver, embora reconheça que entre a utilidade e a inutilidade haja um oceano de pequenos usos, mas, ao contrário dos outros emails que o senhor vem recebendo ao longo dos últimos anos, desde que abriu uma conta de email e começou a receber mensagens, entre as quais catalogamos "mensagens de conteúdo triste", sempre abundantes, e outras, em menor proporção e sempre acanhadas, de "conteúdo alegre", o email que ora envio não deve ser confundido com a miríade de outras coisas que aportam na sua memória, senhor, e foi pensando em evitar essa confusão que tive a ideia de principiar esse email atentando exatamente para o ponto central da conversa que pretendo ter com o senhor, qual seja: esta não é uma conversa como qualquer outra, assim como este não é um email comum, prosaico, uma mensagem que, vista de longe, seria tomada como qualquer outra.  Não, senhor, convém desde já distinguir aquilo que tem relevância do ...

Filhos são peixes

Cecília, ontem  foi domingo, esse dia que, você logo aprenderá, é o mais chato da semana. Por uma razão simples: dentro de 24 horas ou menos, algo ainda mais assustador que o ronco do seu pai vem bater à nossa porta (em alguns meses, à sua também): a segunda-feira. Pra descontrair, mas também porque eu precisava confortar a sua mãe, pus uma música que ela adora. Como uma proto-Daiane dos Santos, você deu pequenos saltos, esticando ao máximo a pele fininha da barriga. Barrigas de grávidas me assustam, filha, principalmente quando se movem como placas tectônicas animadas pelas forças íntimas do núcleo terrestre. Comparo as barrigas a abismos ou grandes volumes d'água. Inexplicáveis e magnéticas.   É realmente esquisito passar a mão ali e sentir uma onda invisível mover-se como um peixe inquieto. Não sei como você parecerá dentro de dez anos, mas, pelo menos agora, é como se cada noite fosse um baile de debutantes e a música rolasse até de madrugada. Há pouco senti que, m...

Ciclista

Não sei o que há, mas que há, há. Sobre isso não tenho dúvida. Ainda agora fui ao supermercado e na fila todo mundo tinha essa cara estranha de quem escondia qualquer coisa, um segredo, uma cédula falsa ou uma caneta estourada no bolso, e, pior, nem se importava, estavam satisfeitos em portar essa verdade, qualquer que fosse ela, dividindo uns com os outros a maravilha que é parecerem normais quando não são. Depois fui almoçar e no restaurante a mesma coisa, o garçom servindo e o barman picando gelo e o caixa atendendo e por todo lado a sensação esquisita de que haviam combinado as regras de um jogo cujo início e fim só eram conhecidos por eles e ninguém mais, de modo que pedi água e saí imediatamente. Mas antes precisei comprar cigarros e seria gratuito dizer que a moça da loja de conveniências me recebeu com um sorriso suspeito, para dizer o mínimo. Foi aí que resolvi ir mesmo pra casa, ficar um tempo sozinho, calado, desliguei computador e tevê, liguei o ventilad...