O POVO – A Revolução dos Cravos, comemorada recentemente, melhora a disposição dos portugueses para encarar o cenário de crise no país e na Europa?
Valter
Hugo Mãe – A Revolução dos Cravos é uma das datas mais
dignas da nossa história. Acabar com uma ditadura é basilar em todos os lugares
do mundo. E foi isso que aconteceu há 40 anos. O meu respeito pelo 25 de Abril (de
1974) é absoluto. A crise é ótima para todos os totalitarismos, todos os cretinismos,
todos os despotismos e, se quiser até uma palavra que acho que nunca disse
publicamente, para todos os “filhadaputismos”. Os 40 anos são efetivamente uma
ajuda para que as pessoas percebam que há uma construção, que é a democracia,
que recuou muito nos dois últimos governos, sobretudo neste governo que agora
está no poder e que é um grandessíssimo monte de “merda”.
OP
-
Como você vê a construção de uma nova hegemonia alemã no continente?
VHM -
É assustador. É muito claro que a Europa neste momento está sendo construída ao
ritmo alemão. Muito claro que a Alemanha faz exatamente o contrário do que o
resto da Europa está obrigado a fazer. E por isso toda a estratégia alemã tem
sido a de proteger os seus trabalhadores, aumentar os salários dos seus
trabalhadores, fomentar a exportação tanto quanto possível e obrigar todo o
resto da Europa a descer os salários, a fragilizar o emprego. E Portugal é uma
das vítimas mais entusiastas. O governo português tem colocado a cabeça de
Portugal na guilhotina com um entusiasmo absurdo. Costumamos ouvir a expressão
de que Portugal tem sido um aluno muito bem-comportado. É muito irritante ver o
governo português de calças em baixo. É muito violento ver a Europa retornando
a clichês nojentos como o racismo e a xenofobia. Todas as fobias mais nojentas
estão de regresso à Europa e aquilo que foi o lugar da vanguarda e da
humanização está neste momento a colocar em causa os seus princípios basilares.
A Europa está muito triste.
OP
-
O Brasil tem conseguido elaborar uma resposta diferente para esses desafios?
VHM
– Eu
não sei se o Brasil está conseguindo encontrar uma resposta ou se está iludido
com uma resposta. Tenho a sensação de que o Brasil pode estar a incorrer na
mesma ingenuidade em que incorremos nós, portugueses, nos últimos 20 anos. Porque
o Brasil está a construir-se, está a respirar em cima do crédito, e esse foi um
bocado o nosso erro. Achar que o crédito é um modo de vida. Um dia os bancos
vão ser denunciados. Um dia vão perceber que os bancos também não guardaram
dinheiro, também não têm dinheiro, e o crédito é espécie de ficção no
computador de toda a gente. E um dia alguém vai lembrar-se de exigir o montante
e efetivar essa riqueza. E vai estar toda a gente pendurada e instrumentalizada
por essa promessa de pagamento, que não passa de uma promessa de pagamento. Eu
tenho um pouco de medo que o Brasil possa cair na mesma desgraça que Portugal
caiu nos próximos 10 anos. Espero que não. Até porque o Brasil foi estrangulado
por tanto tempo. O Brasil viveu uma pobreza durante tanto tempo, que eu
compreendo bem esse entusiasmo.
OP
-
A literatura é uma resposta ou um antídoto às asperezas do mundo?
VHM
- É
tudo isso. Ela responde, ela questiona, ela anula coisas, intensifica outras.
Literatura serve pra tudo. Eu tenho muita vontade de que os livros construam,
que os livros tenham, em última análise, um resultado benigno, que induzam à
cidadania. Talvez não seja obrigatório que os livros das pessoas sejam assim.
Pra mim, ela (a literatura) não pode ser de outra forma porque eu não consigo
ser de outra forma. Eu não quero ser uma pessoa de outra forma. E, como não
quero ser uma pessoa de outra forma, não posso ser um autor oponente àquilo em
que eu acredito enquanto gente. A literatura está para problematizar, mas talvez
esteja também para salvar o mundo um bocado.
OP
-
Qual o lugar da utopia na sua obra?
VHM
-
É muito grande. Quem vive sem utopias vive um pouco sem razão. Quem não
acredita no impossível não vai além da banalidade, além das vivências. E acho
que o futuro está um pouco além das vivências, além de algo que nós ainda não descortinamos.
Eu prefiro estar do lado dos que recusam o ceticismo. O ceticismo é uma espécie
de desculpa pra não fazer. É um pretexto daqueles que não têm esforço ou
imaginação usam para ficarem quietos.
OP -
Numa das passagens do livro, a personagem Halla diz que “o inferno não são os
outros. Os outros são o paraíso”.
VHM
-
Acredito muito nisso. Acho que o Jean-Paul Sartre não era propriamente um
idiota, mas causou um enfoque demasiadamente violento. O inferno pode ser os
outros ou pode ser alguém, mas os outros são categoricamente o paraíso. Não
encontramos nada que nos justifique mais na vida do que outra pessoa. A vida
não se faz por andarmos aqui sozinhos; se faz por sermos misturados com os
outros. Não somos em absoluto nada. Nós somos misturados, e a nossa felicidade
acaba sendo por presumir o outro, por supor o outro. Sozinhos não precisamos
nem de ser felizes porque não precisamos de ser nada.
OP
-
A perspectiva feminina é privilegiada de alguma maneira?
VHM
-
Estou convicto de que a biologia reservou pras mulheres uma aventura muito mais
impressionante. O homem não tem isso de dividir o seu corpo, multiplicar. O
homem é um terreno muito mais estéril, que acaba por procurar realizações
exteriores à sua fisicalidade. Uma compensação. E a mulher tem a maternidade
através dos filhos. Enfim, não é absoluto, não é uma generalização que possa
ligeiramente ser universal. Porque há mulheres que não quererão ter filhos e há
homens que são mais impressionantes que as mães. Mas, genericamente, eu
acredito muito nisso: o lado criativo é muito mais do terreno feminino.
OP –
O processo de desumanização de que trata o novo romance é meramente resultado
da morte?
VHM
-
É resultado de uma frustração. É perceber que persistir em sobreviver é sempre
perder sensibilidade. É sempre caminhar no sentido tragicamente contrário à
sensibilização. E por isso todos nós vamos sobrevivendo menos gente. Ser gente
é ser menos. É um pouco esse paradoxo. Continuar a ser gente é descer os níveis
de humanidade.
OP -
Um dos grandes temas desse novo livro é a comunicação com as coisas do mundo
(objetos, paisagens, animais). Às vezes, porém, esse mundo é muito mais vivo do
que os dos personagens.
VHM – Neste livro eu quis que a natureza fosse quase que uma personagem. Ela surge imbuída com uma capacidade quase pensante. O próprio pai da narradora diz, a certa altura, que a Islândia pensa. E a Islândia interfere no romance de uma forma muito decisiva através daquilo que os personagens esperam, do modo como as personagens interpretam os fenômenos da natureza. Isso é uma forma de espiritualizar aquilo que nos rodeia. É uma espiritualidade aquém da transcendência. Podemos acreditar na transcendência de que Deus existirá depois da morte ou além da vida. Ou podemos acreditar que a natureza em si é uma espiritualidade constante. A natureza em si já nos transcende bastantemente. Ela, por si só, já é muito mais do que nós podemos explicar, do que nós podemos entender, do que nós podemos dominar. Por isso ela escapa-nos. As personagens estão conscientes de que a natureza tem uma inteligência que participa decisivamente das nossas vidas. Eu tenho muito essa vontade de ter na natureza uma religião bastante.
VHM – Neste livro eu quis que a natureza fosse quase que uma personagem. Ela surge imbuída com uma capacidade quase pensante. O próprio pai da narradora diz, a certa altura, que a Islândia pensa. E a Islândia interfere no romance de uma forma muito decisiva através daquilo que os personagens esperam, do modo como as personagens interpretam os fenômenos da natureza. Isso é uma forma de espiritualizar aquilo que nos rodeia. É uma espiritualidade aquém da transcendência. Podemos acreditar na transcendência de que Deus existirá depois da morte ou além da vida. Ou podemos acreditar que a natureza em si é uma espiritualidade constante. A natureza em si já nos transcende bastantemente. Ela, por si só, já é muito mais do que nós podemos explicar, do que nós podemos entender, do que nós podemos dominar. Por isso ela escapa-nos. As personagens estão conscientes de que a natureza tem uma inteligência que participa decisivamente das nossas vidas. Eu tenho muito essa vontade de ter na natureza uma religião bastante.
OP
-
Mas a paisagem que você apresenta em A desumanização é eminentemente
acidentada. O grande símbolo dela é o fiorde. O que ele representa
literariamente?
VHM – O fiorde é mesmo isso. É o lugar do acidente, o
lugar do improvável, o lugar do difícil. Aquele espaço não estava à espera de
ser habitado por gente. É como se tivesse sido construído rejeitando a presença
do ser humano. Mas, por contrassenso ou por casmurrice, o ser humano até ali
conseguiu chegar. E ele representa essa capacidade estranha que o humano tem de
chegar ao lugar impossível, tendo em conta que, paradoxalmente, não consegue
resolver-se enquanto entidade destruidora. Eu penso um pouco sobre essa
dualidade: de ser capaz do impossível, mas não ser capaz de se redimir em
absoluto.
OP -
Outro tema do livro é o duplo. De nascença, o homem é esse ser mutilado como esse
que o surge na sua literatura?
VHM
-
Sim, acredito que todos nós vivemos embotados por uma comunicação incompleta. A
companhia nunca é absoluta, nunca é possível. É uma construção. Estamos
condenados a uma certa solidão, à impossibilidade de comunicar. A solidão é a
condição sine qua non. E isso passa pela linguagem. Não há linguagem
que transponha exatamente a solidão. A literatura é a crença de que um dia vai
acontecer uma comunicação absoluta.
OP –
Misturar poesia e prosa é uma preocupação constante no seu trabalho?
VHM -
Eu acredito muito que os romances são feitos de poesia. Aquilo que faz com que
um relato possa ascender à condição de literatura é o que vai buscar na poesia.
Se o romance não tiver essa dimensão, nem é literatura. É um relato. É uma
narrativa. A literatura constrói-se ao modo como se conta. É feita no modo como
o resultado é alcançado. Esse componente eminentemente plástico é que
transforma a épica em arte. Épica pode ser filosofia e pensamento, mas não é
arte. O que eu proponho nos meus livros é imediatamente a poesia. É o modo de
dizer aquilo. Quero encontrar um modo de contar histórias.
OP
-
Por que escrever a partir da Islândia?
VHM
-
Por ser ao mesmo tempo um lugar cândido e agressivo, longínquo e solitário, mas
habitado. É o espaço que indica a disciplina da vida. É uma noção
de sobrevivência.