Pular para o conteúdo principal

Postagens

Naquele ano eu perdi o meu sapato

Já que tenho me repetido, t alvez tenha dito isso outras vezes aqui. Pior, cada vez que me repito, sinto que digo algo novo. Cada novidade é, assim, uma repetição de algo vivido entre o ano em que eu nasci e o de agora. Portanto, só posso acreditar que o que vem pela frente é sempre uma variação do que navega na mesma direção, mas em sentido contrário. Eu não sei se fui claro, mas em 2009 eu tinha razões para acreditar que, se as coisas não estavam muito fáceis pra ninguém, e realmente não estavam, pra mim elas pareciam bem piores, o que talvez, vendo tudo de longe e um pouco mais velho, não passe disto: um borrão na vista.   Talvez já tenha dito isso também. Nesse ano, o de 2009, coisas estranhas aconteceram, e uma delas foi que meu mp3 emperrou na mesma música. Foi o ano de uma música só. O ano em que eu pensei pela primeira vez: e seu eu pudesse morar no intervalo de um desses versos?   Peço desculpas se agora estou aqui falando como alguém que viu a bes...

Outra coisa

O resultado é que até hoje tenho dificuldade de nomear o que se passa quando, em pleno horário comercial, dou de cara com a suspensão da rotina. O susto de, às 14h27min, encontrar uma brecha no tempo, um respiro no maquinário das horas.  Como se acordássemos de tarde depois de uma soneca, certos de que o relógio havia girado as 12 horas e fosse outro dia, mas ainda é quarta-feira. Ainda é o mesmo dia. E então caminhássemos pela casa estranhando u ma cadeira, um programa na televisão, a voz do pai na cozinha.   Sempre me interessei por tudo que responde ao trabalho com uma lentidão própria. A identificação é automática. Acolho o deslocado e o enviesado como talvez uma mãe abraçasse o filho a quem faltasse norte, um filho cuja vida, sempre na corda bamba, ameaçasse desmoronar. Olhando pela janela da memória, vejo na distração da sala de aula o marco de um regime de extravio, de deambulação à luz do dia, de escapismo.  De lá para cá, à  mercê das tarefas copiadas ...

Suspensão

Lembro quando ainda criança, no meio da aula me perdia e só voltava a custo, às vezes porque a professora chamava pelo nome, às vezes porque tocava o sino do recreio e todas as crianças saíam em galope desenfreado. Muito tempo depois, já adulto e ainda desligado, passaria a me referir a esses momentos como suspensão. Porque eram de fato isso: um hiato no meio da rotina, um pequeno abismo gestado sob os pés por força não da imaginação voluntária. Os abismos que criava eram de outra natureza. E não me perguntem qual, porque ainda hoje tenho dificuldades para compreender o que se passa quando, no meio da tarde ou da manhã, esteja ocupado ou à toa, o fluxo do tempo de repente soa antinatural, e cada objeto da casa ou do quarto assume feições assustadoramente fantásticas. É quando o hábito se desfigura, corroído por qualquer falta de sentido.  No meio da conversa, uma boca se mexe. O que diz? O que quereria dizer se não estivesse dizendo o que diz? O que talvez dissesse não fos...

Olha, é de graça

Uma brincadeira que venho descobrindo é que basta revisitar para perceber que tudo que a gente vem dizendo é de alguma maneira um contradito, ou seja, o avesso, mas o avesso piorado, um contrário falso ou falso contrário. Não o avesso, entendam, mas a falha, e quando digo falha meus olhos de repente acendem e em algum ponto indeterminado do corpo uma luzinha indica a porta de saída.  A falha, portanto. Não o avesso. Reler, ler, reler, eis a brincadeira, que não passa de, uma hora dessas, ainda deitado na cama ou de pé esperando a água do café ferver, espiar tudo que fizemos e dissemos e enxergar ali mais do que antes. Ou não enxergar metade do que antes parecia claro. 

Sustos

De repente começamos a falar sobre o que nos assusta. O mar, eu disse. Grandes animais, ela respondeu. Velhos e palhaços, devolvi; salas iluminadas.  Salas iluminadas, repetiu. Mas é claro que não acreditei e não apenas isso, entendi essa mentira ou exagero como uma senha para que a partir dali disséssemos a primeira coisa que viesse à cabeça, representasse perigo ou não, fosse absurda ou não, afinal o medo não carece justificativa, ele simplesmente é e continua sendo por muito tempo.  Abajures. Ri.  Abajures?  Tenho medo também de tampas de panela e jarras de suco pela metade e portas de guarda-roupa que não fecham direito e telas de computador que escurecem sem explicação. Uma série de eventos domésticos para os quais a física ou a matemática ou a biologia não tem uma teoria.  Fico terrivelmente assustada quando encontro meias pelo avesso e controle remoto sobre almofadas e cortinas que não esvoaçam ainda que esteja ventando. E ass...

Um pouco antes do café

Há dias em que a gente acorda e não reconhece o próprio rosto. A gente se olha, eu me olho, e o que vejo não parece em nada comigo, não sou eu, mas outro que, da noite para o dia, tomou o meu lugar, alguém com o mesmo nariz, a mesma boca, orelhas iguais, queixo, cabelos, entradas, olhos, o mesmo cinza ou o mesmo castanho e a mesma leve assimetria no alinhamento das sobrancelhas, uma mais baixa que a outra, e assim o corpo inteiro, ombros, mãos, joelhos, pés, e então lembro que mesmo o solado dos sapatos se desgasta de formas diferentes, um mais inclinado que o outro lado, e depois, como uma coisa se enrosca em outra, a boca. Quando quero estranhar-me, olho a boca, um lábio derreado, o esquerdo, sempre. Todo um lado esquerdo do corpo diferente do direito, toda uma banda, um hemisfério, como se duas notas musicais em tons diferentes ou lados de um planeta ou como se, no ato da montagem, o responsável houvesse se distraído e, ao perceber a besteira que tinha feito, soltasse: o...