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Postagens

Sorvete

“Essa insistência na felicidade é doentia”, pesquei essa frase de ouvido há duas semanas. De lá pra cá, ficou presa como uma flepa no dedo médio ou resto de feijão grudado nos dentes. Primeiro, insistir na felicidade pode ser tudo, menos doentio, concordam? Pelo menos era assim que pensava, até que insistir na felicidade se transformou no meu esporte predileto. Ia pra casa planejando insistir, dormia pensando que seria a melhor escolha, acordava no meio da noite feliz por haver optado pela obstinação em vez de entregar os pontos e assumir o ônus de existir: ora estamos felizes, ora infelizes, e era uma tremenda bobagem gastar parte do meu dia no esforço de convencimento de que, contrariamente à vida de qualquer pessoa normal, a minha era recheada fundamentalmente com momentos de felicidade. De modo pouco racional, eu calculava que se A quer dizer B e B redunda em A, logo as duas letras seriam iguais em tudo. Ledo engano. Eram, sim, semelhantes em tudo, menos no que interessav...

Nada preocupa os bêbados

Era pra ser a última postagem do ano, mas a última nem sempre é a última, o que quer dizer que o que vem depois do ponto final depende menos da vontade da gente que das circunstâncias.  Nada no mundo nos prepara para o impacto do anúncio da paternidade. Escola, cursinhos pré-vestibular, acampamentos da igreja, alistamento militar, grupos de oração, cartomantes. Nada.  Não era assim que eu tinha imaginado contar pra todo mundo: eu vou ser pai. De qualquer forma, não existe uma maneira certa de dar uma notícia dessas. Não tenho o talento da minha mulher, que, para me trazer a boa-nova, encenou uma peça de teatro, com participação do garçom da pizzaria, a quem agradeço pelo empenho, seriedade e interpretação naturalista.  Preciso dizer que jamais desconfiei de que dentro da caixinha de brinquedo encimada por um palhacinho não havia uma conta com o valor da pizza e das três cervejas, acrescido dos 10%, mas um sapatinho de criança – que, de uma perspectiva uni...

"Mergulhem fundo em 2014", recomenda Luíza Ambiel

Última postagem do ano antes de fechar para breve balancete, esse acerto de contas existencial que precede a abertura de um novo caderno de fiado na bodega da esquina. Depois disso, carregarei “tô externo” tatuado na testa e não atenderei ligações após as 23 horas, salvo em caso de comunicado importante (seu bilhete foi premiado na Mega da Virada, por exemplo). O que é o Natal  Passado esse momento de estupefação que é o Natal , intervalo no qual ninguém se surpreende que um homem velho e visivelmente acima do peso carregando uma sacola de presentes tenha que enfrentar mil e um obstáculos arquitetônicos para finalmente executar um gesto de bondade (reparem que nosso papel é o de criar barreiras para a escalada do Papai Noel, um exemplo flagrante de postura anti-natalina) – superado esse instante de euforia, convém reorientar o canhão de plasma das boas energias em direção aos festejos de ano novo. Um desejo  Se uma vendedora da Avon me perguntasse de supetã...

Iracema de Hans Donner

Voltou a circular na internet uma foto em que a “Iracema da Ecofor” é comparada à verdadeira, a “Iracema Guardiã”, obra do artista plástico Zenon Barreto. São duas índias bem diferentes. Uma é a silvícola de Alencar; outra, uma dançarina do Faustão. Uma enverga o arco, artefato indígena utilizado para caça e defesa; outra, um espaguete flutuador de hidroginástica, muito comum nas piscinas do Sesc. Ano passado, por obra da molecagem, as mãos da Iracema foram decepadas. Era a gota d´água no contínuo processo de desmazelo com o patrimônio. A prefeitura, então, recolheu a estátua para reforma. A índia passou um tempo na praia da Cofeco, na oficina do artesão que cuidaria em restituir-lhe as formas originais (!). Só depois chegou à praia. Era julho de 2012. Ficou dois meses fora do pedestal, curtindo férias forçadas. Foi tempo suficiente para repensar toda uma existência.   Com o regresso, porém, veio o susto. A estátua não era a mesma. Lembrava uma matuta que tivesse ...

Azul

Mais que coragem, fome. Os dois estados não se confundem. Coragem sem fome é passo em falso. Fome sem coragem, platonismo juvenil. Mais que fome, coragem.  A moldura do rosto dispensa paisagem, a paisagem dispensa as falas, as falas dispensam um conjunto de explicações, explicações dispensam o resto. Quando duas pessoas dispensam tutoriais afetivos: isso também é amor. Não há encaixe perfeito, tampouco imperfeito.  Enxergar os outros como peças de Lego é um boa solução apenas quando o objetivo for construir castelinhos com derivados do petróleo. Sexo é menos fricção, mais ocupação. Quando criança imaginava o contrário. Roçar no outro, braço com braço, perna com perna, eis o sexo na cabeça de um menino. Daí que fosse tão bom andar de ônibus. Qualquer ser humano tem em média 2 m² de pele. É o suficiente pra cobrir uma mesinha com dois lugares espremidos. O que cada um faz com a pele morta é o que interessa.   Tudo que escapa pela boca e que não...

Falso

Um falso perfil no Twitter anuncia uma falsa morte de um escritor hábil e indigesto. Longe dali, no mundo real, um falso intérprete para surdos gesticula freneticamente. Entretanto, as palavras que vai desenhando no ar não querem dizer nada para olhos terrificados. Um comunicado informou que o falso intérprete não foi localizado para prestar "os devidos esclarecimentos".  Num estádio de futebol com capacidade para 95 mil pessoas, um presidente se fotografa sorrindo num selfie que captura um grama de genuína felicidade. Está ao lado da esposa, que não consegue disfarçar o falso ciúme que sente toda vez que uma autêntica blondie flerta de mentirinha com o homem mais poderoso e também o mais falsamente honesto do planeta. A imprensa, vacilante entre a falsa excitação e a verdade por trás da cena, decide escolher no cara ou coroa. A possibilidade de que esteja 50% certa a conforta mais que tudo.   Em resumo, o sorteio é falso, as bolas foram manipuladas. O leite é fals...