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Erramos possível

No texto anterior, onde se escreve “gosto”, leiam "repertório" ou qualquer outra palavra menos vulgar, de modo a não parecer que o autor foi exageradamente pedestre na abordagem de uma questão bem mais cabeluda do que de fato se mostrou num primeiro momento. Onde se afirma que o consumo, a depender da ocasião, dispensa essa etapa epifânico-problematizadora, encerrando-se no ato,  sintam-se à vontade para compreender o que quiserem, desde que considerem duas realidades. A primeira: entre o cidadão e a obra, há muitos níveis de fruição. A segunda: pleitear a ampliação do leque de formas de fruição e de obras é diferente de desqualificar escolhas por não contemplarem um referencial particular.  Onde se discutem afinidades eletivas e, por tabela, sugere-se que os repertórios individuais nunca são estanques, recomendo cuidado ao concluir o exato oposto, que o sensível é cristalizado e a esfera do gosto, impermeável às discussões.  Onde se levanta a hipótese de qu...

Gosto, não gosto

Discutir gostos agora é uma atividade sazonal. Às barbas de dezembro, os fóruns locais se agitam. A respeito do assunto, tava aqui pensando alto sobre como muitas vezes somos inexplicavelmente cruéis com quem julgamos ter um gosto apurado ou sofisticado (duas palavras traiçoeiras), classificando-o de elitista. E também sobre como nos esquecemos de que o ecletismo é quase sempre um elitismo com sinal invertido, ainda mais impositivo e excludente. E, finalmente, sobre como é antipático desgostar do que é de gosto comum. Um discurso possível : prefiro X a uma série de outras coisas. X, para mim, representa o melhor, o mais bem acabado, o que não se esvai no processo de consumo. Mesmo quem nunca ouviu falar de X, caso tenha a oportunidade de conhecê-lo, vai fruir algo de qualidade. Dizem que X é para poucos, entre os quais fui maldosamente incluído. Miopia. X é para todos, é para muitos. Num país governado por mim, as pessoas teriam amplo acesso a X. Nos réveillons promovidos so...

Fumaça do bom direito

Todos os dias, um número cada vez maior de pessoas se despede das redes sociais. Normalmente, fazem-no com algum estardalhaço, anunciando a saída aos quatro ventos, imbuindo esse gesto derradeiro de uma grandiloquência bíblica que não deixa de ser engraçada. É possível imaginar esses desertores na estação, um tanto perdidos, acenando para uma esposa deixada para trás, um filho que não se verá nos próximos cinco anos, um marido largado sozinho por força das circunstâncias. O drama é real, palpável. Romper com Twitter e Facebook se tornou tão oneroso quanto abrir mão de coisas essenciais no dia a dia. É uma doença? Não creio, embora aceite os argumentos de que os sintomas de privação dessas ferramentas apontam para um quadro clínico seguramente preocupante.    Vamos aceitar o fato de que, não sendo doença grave, que requer cuidados especiais, correspondem a uma moléstia de menor proporção. Ainda assim, moléstia. Não uma papeira ou conjuntivite, mas uma verminose, uma f...

Republicando: "Barba ensopada de sangue"

Não resta dúvida de que o burburinho midiático que se seguiu – e até antecedeu – ao lançamento do romance   Barba ensopada de sangue   acabou criando uma necessidade urgente de referendá-lo desde já como potencial candidato a história do ano – quiçá de uma geração. Era uma tentação que se justificava também pela alta expectativa que nasce a cada novo trabalho do paulistano Daniel Galera, autor de   Cachalote   e   Mãos de cavalo . Assentada a poeira da novidade, porém, às vozes que saudaram o quarto romance do escritor com pouco mais que entusiasmo e histeria, misturaram-se outras, talvez mais preocupadas em entender como todo o virtuosismo estilístico do autor não foi suficiente para impedir que   Barba ensopada   não se confirmasse como a grande aposta literária. O livro narra a história de um professor de educação física gaúcho que sai à procura do avô, morto em Garopaba, no litoral de Santa Catarina. Sem nome mencionado ao longo dos acont...

Amor/rumor

Não é sempre que o texto começa sem finalidade, vadio no espaço entre as palavras, ganhando corpo aos bocados, fundando-se a cada frase, inaugurando sentidos à prestação. Às vezes acontece de partir duma ideia pré-definida e só depois se desencaminhar, extraviando-se do pressuposto, desdizendo o juízo, desgovernado e aprumado ao mesmo tempo. Finge que vai, mas fica; que fica, mas vai. Noutras, sucede que, mesmo forçando a mão para que tome uma direção, termina por desaguar em outra. Já vi textos que principiam por afirmar X e arrematam com Y, embaraçando todas as letras do alfabeto no percurso. Finge que finge, e fica por isso mesmo. E há casos em que a aparente uniformidade da progressão narrativa é apenas um alçapão abaixo do qual se desenrola o enredo vicinal, intercalado, atravessado por alamedas, becos e córregos. Uma história sem fingimento. 

Planetas escorregando

Há obsessões que acompanham uma vida inteira; outras que vêm e voltam, sem arredar pé, intermitentes, acenando numa esquina para logo desaparecer e, em seguida, ressurgir num canto de muro, numa praça, durante a aula, numa sobra de refeição, exibindo um sorriso difícil de compreender, seja porque o conhecemos de muito tempo, seja porque tem sempre algo de renovado mistério. Marte não é desse tipo. A obsessão pelo planeta situa-se a meio passo do diletantismo, a meio da ciência amadora, a meio da falta do que fazer. E se me perguntam por que tenho investido tanto tempo vasculhando bibliografias e fuçando arquivos na internet, respondo, sem traço de vergonha: não sei. Jamais estive tão interessado em planetas como agora, jamais escavei tanta informação avulsa nem fiz pesquisas randômicas a partir de quase nada, motivado apenas por curiosidade, colecionando novidades e esquecendo-as no instante seguinte. É menos que um hábito, mais que interesse passageiro. Esferas rodopiando...

Os sonhos da mãe

Passo agora a contar o sonho da mãe, uma geminiana de 54 anos, separada, três filhos, dois homens e uma mulher com idades variando entre 33 e 25, dois dos quais casados duas vezes, um deles convencido de que frequentemente basta espiar um pouco a mãe ou o pai em ação na cozinha para entender como tudo foi terminar assim. A mãe vem sonhando com jacarés com uma insistência que me faz pensar em muita coisa. Levado ao pé da letra, o sonho, no qual a mãe luta com o animal, pode não querer dizer nada. À luz dos incontáveis fenômenos sobre os quais não temos tanta certeza, porém, significa muito. Por exemplo, que a mãe talvez precise enfrentar uma criatura agressiva, cheia de dentes, que submerge nas águas mais turvas de um rio caudaloso tão logo algum perigo a ameace. A mãe saberá se defender? Há um agravante. A mãe sonha lutando com jacarés não em seu habitat natural, a água. As lutas são travadas na cama, o centro nervoso de um palácio doméstico. Ali, debaixo dos lençóis, ...