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Ao comando da mão

Não sei se é falta de tempo ou de disposição ou de ambos. Vai ser cada vez mais difícil escrever aqui. Assim, sem justificativa, sem uma razão muito clara. Uma dessas coisas que nos empurram inevitavelmente para algo, não importa se pra frente ou pra trás. Sem motivo, o único lugar aonde iria é o supermercado. Escrever a pretexto de nada, sem querer, sem vontade, não está ao meu alcance. Escrever para conjurar vazios, para criar fomes, isso não tem mais espaço. Escrever pra revolver, isso é aborrecido. Escrever pra inventar, invadir-se, cada invento deixando a nu, cada nudez mais vergonhosa que a outra. No momento quero roupas, cobrir a superfície, desfilar a pele debaixo do tecido. Continuo sem saber o mais importante, que novidade. O mais importante, quem consegue descobrir? É tarefa para venturosos. O mais importante esconde uma mentira. O mais importante esmaga o menos importante. E o menos importante importa agora mais que o mais. O mais importante agora é descer e subir...

Edital 315/6548

O notável esconderijo dos lugares-comuns   Antes de sair de casa para uma rápida caminhada à beira mar ou uma sessão de cinema antes da qual será agradável tomar um café e se deixar preencher por um contentamento genérico, recomendamos a checagem dos seguintes itens obrigatórios: capacete, meias de algodão (meias-calça para mulheres), toalha de rosto, spray de chantilly e um aflitivo calção com forro (maiô, novamente para mulheres). O spray de chantilly é para o caso de alguém se deparar com um contraventor diabético à espreita num desses cruzamentos da cidade. O calção com forro, para o de travar uma partida de carimba. A toalha de rosto, para o de precisar enxugar as lágrimas que se derramam às fartas como prova de amor. Observamos que não será permitido o uso de artefatos alheios à lista de itens obrigatórios.   Caso insista, o candidato poderá ser desclassificado do certame e seu nome constar por dez anos do índex de pessoas com quem não gostaríamo...

Nem tanto assim

Me sinto um porqueira, um pobre coitado e um coração de pedra por não ter gostado de Frances Ha . Faltou pouco. Fui tão disposto, mas acho que o excesso acaba prejudicando o filme. Muitas piadas e piscadelas pra plateia, tombos e confusões, além das sequências feitas para enternecer. Tudo comprimido em menos de duas horas. Não deu. Frances falando bêbada o que é o amor, Frances convidando a amiga pra brincar de luta, Frances tropeçando depois de sacar dinheiro, Frances lindamente inconveniente, Frances maravilhosamente espontânea pela milésima vez, Frances esbarrando de cara no mundo antipático e certinho dos adultos, Frances desmascarando sem querer esse mesmo mundo adulto do qual recusa a todo custo fazer parte, Frances encarando cada revés da vida com um otimismo patológico.  Gosto de coisas específicas do filme. Frances correndo na rua. É uma cena linda que me deu vontade de correr junto. Melhor, de sair do cinema naquele instante e colocar a vida em ordem. Fr...

Eu vos declaro

O juiz do cartório balançava a cabeça pra lá e pra cá, lagarteando da noiva pro noivo e de volta à noiva. Combinava solenidade, esse item obrigatório na celebração pública de contratos civis, e descontração, uma cereja não coberta pelas despesas. Obedecia a roteiro e prazo impermeáveis à improvisação, é verdade, mas se esforçava por tornar tudo menos protocolar.  Falhou mais que acertou, e por isso lhe serei eternamente grato . Durante boa parte do tempo, lembrava uma criança desempenhando uma tarefa maçante. Avoado, i mprevisível,   bem-humorado. Jamais teria encontrado um juiz que reunisse qualidades que tanto valorizo . Isso foi na última quarta-feira, 18 de setembro, a data marcada para o meu casamento. Uma cerimônia simples, bonita e rápida. Quando dei por mim, já havíamos escrito nossos nomes no papel e nos dirigíamos à escada do cartório, que fica numa área movimentada da cidade. Lá fora, nos aguardavam um punhado de gente e outro de arroz. Minha avó não p...

O demônio das impurezas

Uma casa se divide em duas partes: a cozinha e o resto. Tudo assume contornos diferentes quando temos por companhia fogões, geladeiras, panelas, rodinhos de pia e uma mesinha de fórmica habitada por garrafa de café e cesta de pão.  O mundo não é visto do mesmo jeito quando visto da cozinha. As pessoas não são as mesmas quando estão a conversar ou discutir na cozinha. Uma súbita intimidade se apodera, os freios afrouxam, os laços ganham viço. O sisudo cede ao riso, o mais tranquilo alteia a voz, o risonho experimenta a introspecção.  Não é que os papéis se invertam nem as máscaras caiam. É que a cozinha tem lógica contrária à da alcova.  Se nesta os segredos são mantidos a sete chaves, naquela o exercício mais frequente é o de propagar. Se numa o jogo dá-se normalmente entre pares de amantes, noutra a rede amplia-se, envolvendo players de todas as espécies, sabores e taras. Diferente do tempo da sala, onde impera a TV; do quarto, onde nos estiramos à maneira...

O sapo e a sonda

Agora passo a explicar por que, entre tantas imagens marcantes, tais como a da pianista nua e a de Celso de Mello espetado por dúvidas, escolhi dois tópicos para resumir a semana. Foram duas imagens epifânicas, alegres em certo sentido, melancólicas em outro. Ambas agônicas. Traduzem um tipo especial de tristeza e alegria simultâneas que ocorre nos momentos de extrema realização da potência, mas que escancaram as fragilidades, quer estejamos falando de um sapo, quer de uma sonda espacial.  Ou é isso ou começo a projetar as reverberações pessoais em cada coisa e pessoa que vejo ou escuto, exatamente como faz aquele peixe muito estranho cujo aparelho digestivo se projeta como uma espécie grua de cinema e, no segundo seguinte, fagocita o alimento. No fim das contas, é basicamente o que fazemos toda hora. A primeira imagem é a do sapo (pode ter sido uma rã, mas querelas biológicas a esta altura não ajudariam tanto a desatar o nó) que, na última hora, desistiu de ser ast...

Essas qualidades

Então, antes de sair de casa, decidiu colocar alguns pingos nos is.  Chegou mesmo a desenhar aspas com as duas mãos no ar, um gesto que sempre deplorou embora no começo a natureza dessa repulsa contivesse uma semente de rancor ao se conectar à inveja que sentia de um amigo mais inteligente e mais bonito que causava sempre uma boa impressão entre as meninas da mesma idade ao projetar no ar pegajoso da adolescência essas aspas imaginárias, pontuando cada frase com respingos de um humor derivado de Friends , o que prontamente era recebido como sinal de maturidade, ironia e raciocínio rápido, três qualidades que essas mesmas meninas admiravam em rapazes e das quais ele se sentia tão geograficamente separado quanto uma colher de pau no Mogadíscio e uma escada rolante em Vladivostok.  Feito isso, tratou de colocar os pingos nos is e só depois foi embora, não sem antes esclarecer que, tal como havia alertado, o sumo do problema é arredio e não será com três ou quatro anos ou ...