Pular para o conteúdo principal

Edital 315/6548




O notável esconderijo dos lugares-comuns  

Antes de sair de casa para uma rápida caminhada à beira mar ou uma sessão de cinema antes da qual será agradável tomar um café e se deixar preencher por um contentamento genérico, recomendamos a checagem dos seguintes itens obrigatórios: capacete, meias de algodão (meias-calça para mulheres), toalha de rosto, spray de chantilly e um aflitivo calção com forro (maiô, novamente para mulheres).

O spray de chantilly é para o caso de alguém se deparar com um contraventor diabético à espreita num desses cruzamentos da cidade. O calção com forro, para o de travar uma partida de carimba. A toalha de rosto, para o de precisar enxugar as lágrimas que se derramam às fartas como prova de amor.

Observamos que não será permitido o uso de artefatos alheios à lista de itens obrigatórios.  

Caso insista, o candidato poderá ser desclassificado do certame e seu nome constar por dez anos do índex de pessoas com quem não gostaríamos de dividir um elevador, 20 do de pessoas para quem jamais cederíamos a vez na fila do banco e 30 do de pessoas ao lado de quem, em nenhuma hipótese, seríamos vistos às 3 da manhã tomando banho de roupa e tudo numa fonte de praça.

Os casos menos graves serão punidos com um ano de serviços comunitários cumprido no setor de recadastramento do Detran (sede Maraponga).

Os casos omissos serão discutidos por uma junta de notáveis e remetidos ao departamento vocacionado para dar acabamento de solução a problemas insolúveis.  

Ao abrir mão dos itens obrigatórios, vale destacar, o candidato tacitamente aceita o imponderável como elemento inerente à viagem que pretende realizar, circunstância perigosa porque imprevisível. E de imprevistos o mundo está cansado.


O notável esconderijo dos lugares-comuns – parte 2
Experimentar o silêncio é uma atividade tão cansativa quanto falar por cinco horas sem intervalo. Ao final de ambas, a impressão é que, seja em que direção apontarmos a proa do barco e remarmos, haverá ondas de baixa, média e alta capacidade destrutiva, prevalecendo as últimas.

Uma pessoa silenciosa passa com frequência como alguém que se dedica às questões abissais do espírito. No fundo, porém, o que deseja é apenas um pouco de molho de tomate na macarronada.


Três dicas de leitura
Panfletos do mercado imobiliário.
Cardápios de restaurante.
Itinerários de ônibus.


Wish list
Envie para nós uma lista compacta de desejos inadiáveis definidos por ordem de importância. Ilustre cada desejo com uma passagem do velho testamento. Em linguagem acessível, desenvolva o roteiro de um curta-metragem cujo argumento central desconstrói um a um os desejos apresentados nessa lista. Preencha o formulário disponível para download em nosso site. Anexe à lista uma nota de cinqüenta reais. Queime tudo.  

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d