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Mitologias modernas

Vamos falar sobre o mito do desagregacionsmo, essa construção ficcional sócio-proprietária de uma verdade maior que procura explicar, em termos genéricos, como uma realidade particular – a nossa – se movimenta. Primeiro, é preciso dizer que muito já se escreveu sobre o desagregacionsimo e o seu par ordenado, o agregacionismo. Há quem defenda que, enquanto existirem fóruns, caixas de comentários e grupos de pessoas reunidas em torno de uma mesa no centro da qual um casco de cerveja rege todos os fenômenos terrestres e celestes – enquanto houver vida, o desagregacionismo continuará um tema palpitante. Grosso modo, o desagregacionismo consiste na certeza de que discordar,  raison d'être  de qualquer relacionamento, é mais importante que escutar.  Escuto para discordar, portanto. Eis a espinha dorsal do desagregacionismo. Da escuta são filtrados apenas os elementos servíveis ao discurso de crítica e rejeitados os inservíveis. Seja porque a internet permeabil...

Instrumentos de caça

Disse o Armando Freitas Filho que só gente muito sortuda encontra o que procura quando não está procurando, o que não soa como uma definição tão extravagante assim de sorte. Pelo contrário, se existe uma boa definição para a palavra, eis uma que não deixa nada a dever: dar de cara com o que a gente deseja, talvez até sem saber, sem precisar procurar. No mais das vezes, investe-se tempo e energia em algo cujo ganho é vacilante e a consistência, escorregadia. É uma tarefa espinhosa tentar encontrar a sorte no cotidiano, apanhá-la na sala, surpreendê-la na cozinha ou no banheiro, tocaiá-la deslocando-se rápido pela brecha da porta que se abriu com o vento enquanto tirávamos os móveis do lugar de sempre, cercá-la com vassoura, pano de chão e rodinho de pia, que todos os recursos e ferramentas empregados na conquista e manutenção da sorte são escassos e nenhum garante, como de resto os mais otimistas podem ser levados a crer, que encontrar não seja também um dos muitos sign...

A cada 72 horas

Com que frequência o número 1111 aparece no seu dia?  Apenas nesse horário que antecede o almoço ou também um pouco antes de ir dormir, quando decidimos sobranceiramente começar uma atividade que nos tomará as próximas quatro ou cinco horas e ao fim da qual um rosto (o nosso?) vai se erguer de um livro ou da cavidade mais prazerosa do corpo (do nosso?) e se surpreender ao enxergar no espelho um sorriso (o meu?), não qualquer sorriso, mas esse que resulta do acúmulo de impressões ou fluidos – então, com que frequência esse número que esconde um sorriso que não esconde nada acontece? Alguém mais enxerga na repetição de padrões, não apenas numéricos, mas também olfativos e visuais, uma pista de que o cotidiano é regido por leis não escritas, ou seja, todo esse vasto panteão de fenômenos que escapam ao limitado poder de compreensão, à normatização e ao instituto da taxonomia radical? Entendendo por taxonomia radical a irrefreável tendência contemporânea a encontrar, entre t...

Poutpourri

A primeira vez que li “poutpourri” foi num encarte de CD da banda Cheiro de Amor que coloquei pra tocar quando tinha 14 ou 15 anos. Morava numa casa alugada num bairro bem distante de tudo. Logo três ou quatro músicas saracotearam no som da sala, uma emendada à outra. Foi então que tive a certeza de que uma onda jamais interrompe outra onda, pelo contrário, para que uma se forme, outra se quebra, ou para que duas se formem, três se esboroam. Rejeição e simultaneidade se dissolviam na espuma. Era tudo que o axé podia ensinar a um rapaz da minha idade, o que não era pouca coisa.   O poutpourri fazia coincidir, sem atritos, ou com pouco atrito, ou dissimulando eventuais atritos, músicas diferentes, que se justapunham, criando um vago sentido de unidade formal entre partes diversas. Ao camuflar início e fim das canções, suavizando o baque do desfecho e disfarçando o começo de um enredo, a manobra sugeria uma noção de continuidade, apesar das variações no curso dos acontecime...

Jogos

Em teoria, sabemos bem pouco sobre cada pessoa ou coisa e desse pouco quase nada resiste a um segundo escrutínio, o que não significa dizer que tudo se resume a esse doce elogio do inacessível, do imponderável, um jogo cujas regras, desconhecidas por completo, é conduzido às escuras por mãos fantasmagóricas. Não é isso. Acredito que uma vasta camada de tudo que existe dá-se a conhecer a quem, mediante esforço repetitivo, um bocado de paciência e humildade suficiente para reconhecer e explicar a essa plateia pronta a esquartejar que em momento algum teve a mais remota pretensão de ostentar uma vaga ideia sequer de superioridade, que o que se toma como superioridade no mais das vezes é apenas um modo escandalosamente tímido de se manter afastado. Então, acredito que uma vasta camada de tudo que existe expõe-se, nem que seja por uma fração irrisória de tempo, a quem resolve sair de casa e enxergar essa história toda, que acreditávamos maluca e desgastada, sob um ponto de v...

Em tese

Aos poucos você se enreda nessa tarefa penosa que é tentar encontrar uma fibra de sentido para os pensamentos, que dão voltas e se recusam a entrar na casinha número 1, preferindo a nº 2 ou a nº 3, quando não a nº 4 e só muito raramente a nº 5, essa espécie de casa de salvação, que existe apenas como hipótese, assim como os buracos negros e outros fenômenos astronômicos previstos em teoria mas jamais confirmados na prática, seja porque a realidade está aquém da teoria, seja porque está além – ou seja porque não está em lugar nenhum, carecendo igualmente de comprovação. De minha parte, acho pouco produtivo e até certo ponto inviável crer que essas coisas todas que vemos não sejam elas mesmas, mas outras coisas, sob as quais talvez existam ainda outras e dentro destas novas coisas, deus é que sabe.  Custo a acreditar que a realidade possa estar aquém de qualquer teoria. Se tanto, está no mesmo plano, e considerar a possibilidade remota de que algo imaginado encontre par...