A primeira vez que li “poutpourri” foi num encarte
de CD da banda Cheiro de Amor que coloquei pra tocar quando tinha 14 ou 15 anos.
Morava numa casa alugada num bairro bem distante de tudo. Logo três ou quatro
músicas saracotearam no som da sala, uma emendada à outra. Foi então que tive a
certeza de que uma onda jamais interrompe outra onda, pelo contrário, para que
uma se forme, outra se quebra, ou para que duas se formem, três se esboroam. Rejeição e simultaneidade se dissolviam na espuma. Era
tudo que o axé podia ensinar a um rapaz da minha idade, o que não era pouca
coisa.
O poutpourri fazia coincidir, sem atritos,
ou com pouco atrito, ou dissimulando eventuais atritos, músicas diferentes, que
se justapunham, criando um vago sentido de unidade formal entre partes diversas.
Ao camuflar início e fim das canções, suavizando o baque do desfecho e
disfarçando o começo de um enredo, a manobra sugeria uma noção de continuidade,
apesar das variações no curso dos acontecimentos. Era hipnotizante.
Essa era, por exemplo, a mensagem cifrada no lero-lero de
Carla Visi, responsável pelo axé mais suingado da época, uma baiana morena que
surgiu para a música na esteira de Daniela Mercury e Márcia Freire e cujo
reinado teve vigência mais ou menos até a aparição espetacular de Ivete
Sangalo, frontgirl da Banda Eva.
Passado tanto tempo, que papel ainda desempenha
o poutpourri em tempos de poliamor, polichinelo e poliuretano, matéria-prima flexível muito usada na fabricação de travesseiros que estranhamente retêm a forma de uma mão mesmo depois que esta já se distanciou, resultando em efeito conhecido como memory foam?
Por que retomar o tema neste congresso tão avesso à ideia de radical interconectividade ou possibilidades combinatórias extravagantes? Finalmente: a internet já não seria prova suficiente de que a interpenetração dos territórios é uma realidade incontornável?
Por que retomar o tema neste congresso tão avesso à ideia de radical interconectividade ou possibilidades combinatórias extravagantes? Finalmente: a internet já não seria prova suficiente de que a interpenetração dos territórios é uma realidade incontornável?
Uma resposta possível é que, diferentemente
do que ensinam nos cursos de coaching afetivo e nas graduações do bem-viver, mesmo
as alterações drásticas de rumo ocorrem sem que haja necessariamente uma
interrupção visível na sequência de fatos, o que nos convida a olhar para
categorias como fragmentação e continuidade de uma maneira diferente, pondo de
lado a ingenuidade que tenta enxergar progressão e segmentação onde há somente recombinação
e desacerto.
A chave para entender a relevância do poutpourri, no entanto, parece estar na própria palavra, que evoca excessos de bebida, sexo, noites e
dias Mastroianni, deambulações existenciais, intempestividade e pronta resposta
a falsos dilemas, mas também doce continuidade e fiel adesão ao que permanece.