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Em tese

Aos poucos você se enreda nessa tarefa penosa que é tentar encontrar uma fibra de sentido para os pensamentos, que dão voltas e se recusam a entrar na casinha número 1, preferindo a nº 2 ou a nº 3, quando não a nº 4 e só muito raramente a nº 5, essa espécie de casa de salvação, que existe apenas como hipótese, assim como os buracos negros e outros fenômenos astronômicos previstos em teoria mas jamais confirmados na prática, seja porque a realidade está aquém da teoria, seja porque está além – ou seja porque não está em lugar nenhum, carecendo igualmente de comprovação. De minha parte, acho pouco produtivo e até certo ponto inviável crer que essas coisas todas que vemos não sejam elas mesmas, mas outras coisas, sob as quais talvez existam ainda outras e dentro destas novas coisas, deus é que sabe.  Custo a acreditar que a realidade possa estar aquém de qualquer teoria. Se tanto, está no mesmo plano, e considerar a possibilidade remota de que algo imaginado encontre par...

Acompanhe em tempo real

Acima, grupo de alunos aprende o duro processo de acompanhar a vida em tempo real  As ações agora têm um predicado que busca dotá-las de um grau ainda maior de autenticidade.  Que predicado é esse? O que possibilita que narremos em tempo real, ou seja, o tempo que se desenrola à medida que o presenciamos. Veja em tempo real, acompanhe em tempo real, informe-se em tempo real, divirta-se em tempo real – esses enunciados têm em comum o fato de convocarem a um modelo específico de participação.   O que há, porém, nessa sobreposição, porque se trata realmente de uma, que provoca tanto fastio? Ou não é fastio essa sensação que se segue a toda exposição excessiva e frenesi digital?O que temos feito de errado? A impressão é que eliminamos etapas de um processo cujo resultado final era a criação de noções e conceitos a partir de experiências que costumavam exigir maturação.  As opiniões estão aí, agora como subproduto do fazer/pensar simultâneos e não de...

Desilusionismo

Li uma reportagem que chamou a minha atenção menos pela tragédia que apresentava ( pessoas morando nas ruas ), o que me envergonha, do que pela súbita curiosidade que a expressão “desilusão amorosa” despertou, piscando como uma luzinha frenética no painel de lugares-comuns.  A desilusão amorosa é o comportamento ou o efeito naturalmente daninhos, é a conclusão de um processo em que ao menos uma das partes, querendo ou não, coloca a viola no saco e vai em busca de outra coisa porque já não é possível conviver com esse outro cuja imagem se estilhaçou em mil e um pedaços e agora cada pedaço é diferente do conjunto harmonioso que resplandecia na cama às primeiras horas do dia. Nada ali é familiar, e o sentimento é de total desterro.  A desilusão é o fim da picada, e não custa lembrar que o fim da picada é o ponto derradeiro além do qual a mata é tão cerrada que os golpes de facão já não são capazes de abrir caminho.  Desiludir-se é estar além dessa fronteira e,...

Procura-se

Escrever é às vezes passar horas à procura do que escrever e ao cabo de uma manhã inteira dedicada a batucar vazios concluir entre pesaroso e excitado que a procura foi o que de mais importante aconteceu nessas quatro ou cinco horas. E isso nos leva a conferir à busca o status de tema ou algo equivalente. Moldura de um tema, por exemplo, ou dobra que se enverga sobre si mesma, buraco que se abre e no lugar do objeto/pessoa pelo qual e por quem ansiávamos encontramos, que piada, outro buraco/pessoa. Então a busca corresponde à nova busca, eis uma velha premissa narrativa usada e abusada por desenhos animados e jogos de videogame, histórias fantásticas e boatos do quarteirão. Cada etapa justifica a etapa seguinte e por aí adiante. De repente, nos vemos subindo alguma encosta íngreme ou montanha ou nadando em rios de fogo ou enfrentando gigante com dez chifres ou parando em frente à toca de um animal selvagem precocemente domesticado que já não representa tanto perigo mas diante...

Sobre "A maçã envenenada", de Michel Laub

A maçã envenenada , de Michel Laub, ecoa procedimentos e temas caros ao universo do autor, a exemplo do impacto de eventos históricos na vida de personagens mantidos à boa distância cronológica e física dos acontecimentos. O livro arma-se em torno de um problema aparentemente banal: como a força-motriz do acaso altera drasticamente os rumos de uma história – de qualquer história. O resultado, porém, não empolga tanto nem aprofunda as questões apresentadas em romances anteriores.   Anunciado como a segunda parte de uma trilogia cujo capítulo inaugural foi o magnífico Diário da queda , o novo romance tem grande autonomia ficcional. É desnecessário informar que se trata de uma continuação. O dado, mencionado na orelha do livro, não fará a menor diferença no decorrer da leitura. O cotejo entre personagens e situações não convence de que os dois romances guardem uma conexão mais íntima que vá além de uma vaga moldura sentimental comum.   Do que trata A maçã envenen...

Árvore velha

Enquanto escrevia que começo e fim são o prolongamento de outra coisa e que essa outra coisa repousa em algum lugar do tempo inacessível, minha vó se despedia da gente no hospital. Estava há dois meses internada depois de uma queda em que fraturou o fêmur. Levada à unidade de atendimento, rapidamente apareceram mil e uma doenças, fragilidades, vacilações de um corpo de 95 anos que se mostrava a cada dia mais cansado do que todos nós desejávamos que estivesse. A vó foi embora sem dar um alô derradeiro pra gente – ou pra mim, que não a visitei após a última transferência. Nesse tempo, telefonava pra mãe, perguntava, tentava animar as coisas. Fui vê-la quando ainda estava na UTI e a situação era mais delicada.  Há duas semanas, porém, houve pequena melhora, que resultou na mudança para um leito destinado a pacientes cujo risco de morte deve ser um degrauzinho menor. Os rins voltaram a funcionar, o pulmão dava sinal de que iria se recuperar, os olhos abriram e ela fina...

Um final para todas as histórias

A grande dúvida é se leio o final de “Caverna do Dragão”, e com isso me liberto do mistério que se arrasta há pelo menos vinte e cinco anos, ou se, conscientemente, evito a todo custo conhecer esse segredo de Fátima dos desenhos animados recentemente divulgado na internet.  As duas alternativas são igualmente tentadoras, mas tendo à segunda, ou seja, a me distanciar do conhecimento derradeiro – considerando-se a possibilidade remota de que esse final coloque realmente uma pá de cal na história do grupo de adolescentes que viajou do parque de diversões a um parque do mundo fantástico. Conhecer ou não conhecer, eis o problema: quem conhece elimina o mistério ou amplia-o? Por que tanta gente resolveu forjar finais próprios durante todo esse tempo em que não foram produzidos novos episódios para a série? Afastado da leitura, teria o privilégio de seguir imaginando, como qualquer pessoa saudável, meus próprios finais para a aventura, é verdade, mas também me privaria d...