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Puzzle doméstico

A luta com o doméstico não tem fim. Trata-se de peleja cujo resultado sabemos de antemão, e ele não é outro senão a derrota.  Vejam o caso do sofá, por exemplo. Chegou aqui desconjuntado, feito em pedaços, cada parte recostada à parede, inofensivo qual um Tiradentes esquartejado, muito pouco ciente da realidade total, refém da minguada ciência de si, alojado numa entristecedora falta de recursos cognitivos.  Pois esse mesmo sofá, até pouco tempo atrás um alienado, logo pôs-se a dificultar a vida dos moradores da casa, primeiro aparentando ser fácil de manusear quando, em verdade, é um verdadeiro quebra-cabeças; segundo, opondo uma resistência sobre-humana ao encaixe perfeito dos braços e pernas, o qual, mesmo agora, passadas três horas de agarra-agarra, lambe-lambe, esfrega-esfrega, roça-roça, sobe-desce, permanece uma miragem, um amplo desejo irrealizado, uma vontade de potência que não se realiza num curto horizonte de expectativas.  A ironia é que u...

O atravessador

Confundir as fronteiras é uma atividade sem fim, sem finalidade; sem fim, ininterrupta, que se estende no tempo e no espaço. Logo despropositada, mas assentada em base real: confundir fronteiras é afirmar-se portador de nada e de tudo, falante de todas as línguas e de nenhuma, hábil mercador de um produto que interessa a qualquer um e a ninguém. Virtual serendipitoso, é a figura do atravessador a que melhor representa o desfazedor de fronteiras. Diluir postulados, desmanchar capitanias de sentido, reunir opostos morais, encarar o próximo e o distante como igualmente dessemelhantes e nisso não enxergar qualquer paradoxo.  Comunicar o incomunicável com a mesma graça, ir de uma margem a outra do espectro, divertir-se com o infortúnio que é habitar o tempo poroso. Tudo isso o atravessador está capacitado a desempenhar, embora, por alguma razão, não desempenhe.  Sendo o profissional do futuro, o que obrigatoriamente o transforma em profissional do passado e também...

Ondina

O repertório do novo impõe desafios. É sempre assim, uma nebulosa de cheiros e sons e ações que difere em quase tudo da anterior, familiar, plenamente doméstica, já quase naturalizada, parte da rotina, inconfundível. A rotina, como todo mundo sabe, é o lugar da ambivalência, da tensão latente e das pequenas mudanças. É nela que se entreveem as primeiras fissuras, as crises miúdas que anunciam o pior ou o melhor. Com o velho, se foram o tilintar dos talheres na pia vizinha, os passos que se demoravam no comprido da passarela, o corrimão ondulando a cada batida da chave, o vento na janela do quarto, os gatos empoleirados etc. Há outra janela pra outra paisagem. Mudando a paisagem, o que muda? É olhando por ela que vem o pensamento: persiste em qualquer mudança no espaço ou no tempo uma camada – imaginar tudo em camadas é visualmente mais simples e didático – que não se desloca, logo fixa, logo permanente.   Reconhecer cada pedaço estranho de um lugar ou de alg...

E todos viram as estrelas

Acabamos de ver o lugar, parece bem bom, dois quartos, uma sala, cozinha ampla, uma janela, duas janelas, armário, pia, três lances de escada, jarros, boa vizinhança, três homens sentados na calçada bebendo refrigerante ou vinho ou suco de uva, um rapaz tatuado moreno bermudão de tactel passando com a prancha debaixo do braço, 13h30 de uma sexta-feira, uma varanda, duas varandas, vento, muito vento, bastante vento se querem saber, a sala iluminada, branca, desejo imediato de armar a rede, a um passo do parque, a dois do supermercado, a três da avenida, a quatro da escolinha do bairro, a cinco de outra avenida, a seis da parada de ônibus e por aí vai, a proprietária do prédio, por sua vez também dos apartamentos, o que inclui o nosso, tomando por nosso a posse alheia agora locada para terceiros, no caso, a gente, a proprietária e locatária e síndica, depois de vencer com dificuldades as escadas ("preciso me exercitar urgente"), deixou logo bem claro escolho todo mundo ...

Ira índia

Iracema lê mas não assusta, bebe mas não embriaga, trepa e não apaixona, fuma e não arreganha, escreve e não tem ressaca, briga e não reata, flerta e não beija.  Iracema compensa tudo que erra com sorriso, xinga e finge desconcerto, falha pensando no bem de todos.  Escorregadia, soneto sem a quarta parte, alçapão, gambiarra, geringonça, trapaça, arranjo, fortuna. É a mulher de toda vida beijar a lona, Iracema, ergue o rosto exatamente quando a câmera aproxima e fita o brilho triste da luz coada nessa dorzinha nem muito forte nem fraca, na medida.  Quer o quê, criatura? Deitar e rolar na BR, a índia responde.   O esquilo tem peste bubônica, o trem descarrila, o jogador bate na trave, o papa pede sol na cristandade sem saber que o sol ilumina e aquece o corpo e o corpo aquecido quer logo de imediato, e Iracema continua sem saber o que quer, quer o quê, mulher?  Fica com a cabeça assim, balança que nem calango em cima do muro, tomando quentu...

A letra

A letra degenera? A minha, sim, a manuscrita, a que sai do encontro da ponta da caneta ou do lápis com a superfície do papel ou de outra qualquer, a que resulta do movimento repetitivo do pulso, que inclina a cada nova curva do alfabeto. Falo dessa letra miúda, dançante, longilínea ou cartesiana: a letra muda. A minha foi degenerando, degenerando, até chegar ao estado atual de garrancho, de coisa única, emaranhado de fios que apenas remotamente guardam alguma semelhança com a letra bonita, quase feminina, da 7ª série. A dúvida é se a falência da letra corresponde a outra, pessoal, moral, estética, ou se uma não tem que ver com a outra, se são domínios separados da experiência, sendo a letra uma ferramenta que se deforma gradualmente sem que possamos fazer nada a respeito.  Será assim? É a letra um instrumento de corte que se desgasta naturalmente ao limite da cegueira? É a letra reflexo de uma modalidade de pensamento retilíneo, contínuo, compassado, de palavras que s...

Janela

Como é difícil se desapegar de uma janela, uma simples janela, quadradinho aberto na dureza da alvenaria, um suspiro na treliça dos circuitos da argamassa, breve passagem comunicante do externo ao interno, dentro para fora, alheio ao íntimo, um Suez das brisas, Panamá das emoções, duto através do qual nos chega sempre essa chuvinha inclinada, nunca vertical, mas inclinada, oblíqua, a vertical é uma chuva avessa ao familiar das janelas, cai no lugar sabido, previsível, e é nisso que as janelas realmente são boas, permitir o imprevisto, o entrevisto, o nunca visto, quantas vezes nos assustamos olhando além da janela, quantas nos tornamos pensativos à beira da janela, quantas nos desolamos ao surpreender a paisagem da janela, quantas nos angustiamos ao esperar alguém de cotovelos fincados no parapeito da janela, quantas nos emocionamos ao admirar o jarro deixado na janela? A janela é um buraco negro caseiro, doméstico, barato, com trânsito de mão dupla, não custando muito mais...