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Habitante do bloco K

Embora guarde lembranças boas (porque nele nos debulhamos ao recordar parentes e amigos) e ruins (porque lamentamos a perda irreparável), um cemitério não deixa de ser um lugar interessante, se não pela carga emocional de que se reveste, ao menos pela forte presença de traços da conduta humana só encontrados em logradouros assim. Mais interessante que isso, porém, é a arena física, a disposição, a geometria, as subdivisções e classificações, o senso de aproveitamento do espaço, as regras, a paleta de cores e demais atributos que o caracterizam. Apesar de dar a acolhida final aos que amamos, o cemitério foi feito para quem está vivo – supondo, claro, que os mortos não confraternizem nem se prestem homenagens póstumas. Um cemitério abriga não apenas homens dedicados a regar flores ou a preparar a argamassa que vedará túmulos. Enquanto trabalhadores fazem pequenos consertos, podam árvores e caiam muros, deixando tudo o mais agradável possível para que as pessoas vivas visi...

Pedagogia do possível

A morte terá realmente algo a nos ensinar além do fato de que algumas coisas são irreversíveis e outras não? Que algumas coisas ficam e outras vão embora? Que já não há meios de fazer o tempo voltar? Os cometas passam duas vezes ou mais, os aniversários, os casamentos, os eclipses lunares e solares    se sucedem. E rupções vulcânicas e tremores de terra e tempestades se registram aos montes. O próprio planeta talvez já tenha existido em outras dimensões. E o amor vai morrer numa esquina para se repetir em outra, dizia o cronista. A morte, entretanto, é única. Se deixa recado, se guarda lições, se tem significâncias ou o que quer que compreendamos como supremo ensinamento, tudo isso pertence mais à fé e ao desejo que à certeza. O que queremos é que tudo padeça de sentido. Nem sempre é assim. Garimpar sentido é uma graça.  Enxergar na morte uma lição torna tudo menos doloroso? Encará-la como uma derradeira aula ministrada por alguém cujo rosto não teremos mais o p...

Régua e granada

Qualquer cretino pode ser espontâneo. Então eu acho que a literatura vem desse conflito entre a ordem que você quer e a desordem que você tem.  HH, Fico besta quando me entendem . Essa Hilda entendia bastante do Fla x Flu de cada um.  E eu, que tento parecer espontâneo sempre que possível, o que não pode se confundir com genuína espontaneidade, me vejo apenas cretino, mas um cretino ressabiado, incapaz de dar dois passos sem se perguntar se o terceiro realmente precisa existir e, em caso afirmativo, se é esse que estou dando e não outro. O que também não pode ser tomado por medo ou covardia. É antes um apreço desmedido por transformar toda estranheza do contato com as ranhuras da superfície sobre a qual se caminha em uma informação familiar, segura, deliberadamente cultivada. Verter o desconhecido em degrau.   Dizendo assim, tudo explicadinho, até parece mesmo covardia, mas insisto que não é. Ou é? Não, não. É só um jeito de andar diferente, confe...

Supernormal sentir o que sentimos

Nossa primeira super lua (embora prefira falar supermoon, que me faz pensar no mugido prolongado de uma vaca triste, vou usar aqui super lua)  foi há dois anos.  Me engano fácil, foi no finalzinho do ano passado, portanto dois mil e doze. E mesmo assim parece que já tem tanto tempo, quase noutra vida, como reza o clichê.   Estávamos sentados no que chamamos A Ponte Velha, uma pata de cimento pousada tranquila na borda do mar, braço quebradiço, ruína arquitetônica, superfície perfurocortante que vai aos pouquinhos se desfazendo: p rimeiro uma lasquinha, em seguida outra, até que os pedaços faltantes sejam tantos que haja mais da ponte dentro d'água que fora.  A isso damos o nome pouco simpático de morte, que julgo valer também pras coisas inanimadas, o que forçosamente me leva a admitir a existência desta anomalia conceitual, a "coisa animada".  A alguns metros dali, na Ponte Metálica, lá onde os meninos ainda tocam Legião Urbana e as meninas ainda...

Passinho

É bastante comum se sentir meio estúpido depois que se entra numa discussão, seja ela qual for. É um sentimento que irmana negros e índios, pardos e brancos, amarelos e encardidos, assalariados e dependentes do Bolsa Família. Sobretudo quando o assunto é da ordem do genérico, do fluido, do subjetivíssimo, calcado em lugares-comuns de uma retórica consuetudinária que, mesmo sem saber direito, vai passando de língua a língua, fazendo pequenos estragos não porque seja necessariamente daninho, mas porque elimina a hipótese de colocar em discussão essa verdade prefigurada, retórica que já vem embalada, pré-cozida, um ponto de vista empacotado: vamos por aqui, é assim, a cidade comporta-se desse modo e não daquele, o fortalezense é estanque, os hábitos estacionaram nos anos 80, é o que vemos repetir-se toda hora, vindo de bocas as mais diversas, cheias dessa certeza que iguala sociologia a alquimia, ciência a carteado, análise e boliche.  Até que uma hora a gente sai um pouco do ...

A função da diplomacia no meio cultural

Congresso de irônicos e diplomáticos elege novo presidente, que, por timidez, mas também por medo, decidiu que talvez fosse melhor ficar de fora do enquadramento do fotógrafo  Se a política é a guerra por outros meios, a “diplomacia cultural” é a continuidade da ironia em âmbito diferente; ambas inviabilizam o debate, anulam a troca de ideias, aniquilam a divergência. A ironia aposta na superabundância do ruído; a diplomacia, na superabundância do silêncio. Uma diverge na arena pública para convergir na privada; a outra converge publicamente para divergir depois, nem sempre pessoalmente, o que a torna, ao menos nesse aspecto, mais nociva que a ironia. Fato é que ambas não estão verdadeiramente interessadas na troca, mas na viabilização de projetos personalistas. Mas há entre os dois procedimentos – o irônico e o diplomático – diferenças claras. Enquanto a ironia recorre ao humor, acusando a superdimensão do ego, a diplomacia despe-se, em aparência, de qualq...

Joaquim Fênix Barbosa audita a alma nacional

O negócio do Joaquim Barbosa é, ao contrário do de Frota, auditar a alma nacional, identificando nela os pontos já necrosados (muitos) e os que ainda parecem ter conserto (muito poucos), e, a par desse raio-x obtido após uma varredura fina, feita a contrapelo, uma varredura sem a qual seria humanamente impossível descobrir nossas mazelas, um processo que se complexifica à medida que avança, uma profunda investigação das instituições e dos homens que as tornam possíveis, prescrever unguentos e beberagens a fim de colocar nos eixos a brasilidade.   Joaquim Fênix Barbosa é, conceitualmente, a reunião, num só corpo, de Saruman e Gandalf, da magia negra (sem preconceito) e da branca, do desinteresse e da paixão. É, por essas razões, um arauto da dubiedade, gene dominante do confiar desconfiando, antropólogo antropofágico.  Joaquim incumbiu-se da tarefa nada fácil de higienizar a morada nativa, esfoliar o congresso, drenar impurezas dos hábitos cotidianos, espargir águ...