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Como foi de viagem?

Antigamente, numa galáxia muito distante, os antropólogos investigavam lugares ainda intocados pela civilização. Percorriam vastidões do mapa à procura dos vestígios de como a humanidade havia sido nos primórdios. Desperdiçavam tempo e dinheiro na tentativa de entrar em contato com sociedades diferentes da ocidental, baseadas em valores exóticos, entendendo-as não sob a ótica própria, mas por meio dos mecanismos internos que regiam essas mesmas formações. Obedeciam a um procedimento que, se não lhes permitia total inserção num contexto diverso, ao menos garantia alguma possibilidade de se colocar no lugar do outro sem, contudo, empoleirar-se num patamar de superioridade.  Nessa galáxia, o sumamente intrigante repousava numa zona similar à de Stalker , longínqua, feérica, uma autêntica América virginal, por exemplo, ilhas esquecidas pelo progresso ou tribos vagamente selvagens da Oceania, territórios cujas propriedades mágicas excediam as leis e regras de uma sociedade ...

O que faz um cosmonauta nas estepes

Cinco meses após consertar o probleminha lá na ISS, o cosmonauta, como eram chamados os aventureiros do espaço na antiga URSS, retorna e pousa nas estepes do Cazaquistão, antes parte dessa mesma antiga URSS, e nas estepes descobre algo que o marcará profundamente, algo que o fará arrepender-se inclusive de haver deixado pra trás o violão e uma gaita, presentes do pai no último aniversário, ocasião em que comemorou madrugada adentro seus 47 anos bem vividos. O cosmonauta, é o que parece ter acontecido nesse intervalo entre a travessia da atmosfera e o pouso, relembrou um nome que havia esquecido ainda na adolescência, quando caiu de uma árvore em cima de um cavalete e acabou fraturando três costelas. Esse nome, segundo informou uma fonte em off na agência espacial russa - embora o aventureiro tenha nacionalidade canadense, foi na Rússia que se deparou com a primeira de uma série de pistas para encontrar o que procurava –, tem importância considerável na vida do herói da...

História da franja

Não sei se já falei que a Duda é uma graça. Talvez sim, talvez não, de modo que vale a pena repetir – caso já tenha falado – ou afirmar – caso não tenha –: a Duda é uma graça. Quando me pediu para que lhe escovasse os cabelos, por exemplo, tratou de acrescentar que o desafio seria não apenas desembaraçar as melenas, mas produzir uma partilha equânime da franja, que deveria despencar à esquerda, dividida com rigor matemático. “Se não for assim, não consigo dormir, titio”, disse. Com isso, provocou 1) curiosidade com a alternância randômica no uso das formas “tio” e “titio” e 2) e medo diante da responsabilidade que era converter a massa informe de fios em um simpático arranjo capilar dotado de uma complexa e também esotérica propriedade terapêutica que induzia ao sono. Ciente das minhas limitações, caprichei no penteado, desfiz os nós recalcitrantes e deixei tudo estirado, lisinho, de caimento invejável, exatamente como as meninas de sete anos gostam que fiquem os c...

O momento mais difícil da noite

Quatorze horas depois do show do Paul, como já se tornou cansativo e repetitivo falar da estrutura que não teria funcionado – mentira, funcionou - e da falta de educação do cearense – o viralatismo local é talvez um dos maiores do Brasil -, o que ainda resta? Engarrafamentos? As retroescavadeiras mudas atoladas nas vias ainda não pavimentadas testemunhando nossa maioridade cultural após a entrada no mundo dos grandes shows e, ainda por cima, com um ex-beatle? A falta de táxis e linhas de ônibus que pudessem atender a demanda? Os banhos de cerveja? Os ricos que desfilavam nas áreas nobres da arena sem saber de fato cantar uma única canção dos garotos de Liverpool? Afinal, o que foi mais grave, o som baixo no começo do show ou a turma que insistia em furar as filas na entrada? Nossa deseducação atávica ou o abusivo preço da cerveja? A falta de sinalização em parte das escadas ou os fumantes que não respeitavam ninguém (eu entre eles)? O mais grave não foi nada disso....

Óculos de realidade diminuída

Agora que o HSBC resolveu de moto próprio alargar o horizonte dos meus sonhos aumentando o limite do meu cartão de 800 reais para 1.150 reais, limite este que contrasta com aquele, autoimposto já havia três anos em virtude de minha faceta consumista quando se trata de jogos, livros, revistas etc., além de iogurte grego; levando-se em conta igualmente a excitação que, por meio de uma correia de transmissão invisível, se espalhou feito doença venérea e agora está contaminando todo mundo que conheço horas antes da apresentação do Paul; considerando-se, finalmente, atendidas as expectativas da semana, que se não eram tantas nem complexas tampouco pareciam simples ou exeqüíveis em um nível primário; pensando em tudo isso e mais ainda no que disse o tradutor e escritor Cabra Preta no blog do IMS, cujos tópicos recomendo como leitura imprescindível a quem quer que pretenda colocar uma vírgula que seja no papel daqui pra frente. Dito isso, a única saída que me resta é deixar de fi...

Eu tenho medo

Embora não pareça amedrontada, a atriz Regina Duarte sorri após curtir a página no Facebook de uma campanha contra a violência urbana. Intimamente, porém, a atriz sabe que desempenhou o papel que lhe cabe e se sente contente por isso Duas palavrinhas sobre o medo, o grande tópico em torno do qual a sociedade alencarina dilapida o intelecto nos dias que correm, tema de conversas animadas no shopping e na livraria, na fila do cinema e na barraca de praia. Há uma semana, tive uma discussão ferocíssima com meu pai. Foi motivada por uma observação que fiz depois de visitar o condomínio onde mora uma amiga da minha namorada. Disse: as pessoas se encastelam, abdicam do espaço público, privam-se do contato com a cidade, blindam-se e depois vão reclamar da insegurança. Não querem uma cidade para viver; querem uma que lhes resguarde das ameaças.  Mesmo depois de identificar o primeiro muxoxo no Haroldo, continuei: os bairros ficam desertos, ninguém anda nas calçadas, o car...

Precisamos falar sobre a rapariga

Rapariga, eu? Com muito orgulho, respondeu Rita Hayworth a um repórter que pretendia constrangê-la ao perguntar se a atriz costumava sair com muitos homens ao mesmo tempo Dispensando a introdução e a contextualização (leiam este artigo e este outro aqui ), vamos ao que interessa, ou seja, não ao conceito de rapariga, que sobre isso não me sinto suficientemente escolado para teorizar, mas ao fato de que devemos ter a liberdade de pronunciá-lo, nós e os forrozeiros. A questão de fundo é o tratamento sexista que as músicas de forró prodigalizaram no que diz respeito à figura feminina. “Rapariga”, por exemplo, é uma expressão com que frequentemente os cantores se referem a um segmento das moças que consomem o produto. Não sei se muitas mulheres se identificam com a adjetivação, mas, a crer no que relata o escritor e crítico musical José Telles, de cujo artigo se originou um debate com ranço conservador, quando instadas, um número considerável de raparigas (conotação lusita...