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O momento mais difícil da noite




Quatorze horas depois do show do Paul, como já se tornou cansativo e repetitivo falar da estrutura que não teria funcionado – mentira, funcionou - e da falta de educação do cearense – o viralatismo local é talvez um dos maiores do Brasil -, o que ainda resta?

Engarrafamentos? As retroescavadeiras mudas atoladas nas vias ainda não pavimentadas testemunhando nossa maioridade cultural após a entrada no mundo dos grandes shows e, ainda por cima, com um ex-beatle? A falta de táxis e linhas de ônibus que pudessem atender a demanda? Os banhos de cerveja? Os ricos que desfilavam nas áreas nobres da arena sem saber de fato cantar uma única canção dos garotos de Liverpool?

Afinal, o que foi mais grave, o som baixo no começo do show ou a turma que insistia em furar as filas na entrada? Nossa deseducação atávica ou o abusivo preço da cerveja? A falta de sinalização em parte das escadas ou os fumantes que não respeitavam ninguém (eu entre eles)?

O mais grave não foi nada disso. O triste, o difícil, o lado complicado, aquele instante em que nos perguntamos se devíamos mesmo ter comprado os ingressos e saído de casa; o maior infortúnio não se deveu às dificuldades estruturais de acesso ao estádio nem aos contratempos previsíveis; tampouco foi obra da lamaceira no entorno do estádio.

O momento mais ingrato da noite, senhoras e senhores, ocorreu durante aqueles poucos segundos em que transcorreu a maior loucura de amor da história da província alencarina: a do casal Caroline e Kenzo.

Explico: pouca gente costuma tratar do assunto abertamente, sem preconceitos, constrangimentos ou receio de parecer demasiadamente infantil, mas todo homem teme uma loucura de amor. Pior: todo homem já experimentou o peso que tem uma loucura de amor bem-sucedida, sem cafonices em excesso, como a levada a cabo pelo jovem casal.  

Quem, no Castelão, estava de par com a namorada, esposa, noiva ou afim pode identificar na expressão da parceira não uma insatisfação irremovível, que a noite não era para isso, mas uma delicada e nada remota certeza de que aquela loucura a se desenrolar diante dos olhos de milhares de pessoas; a loucura que, por merecimento, deveria ter sido dirigida também a ela; o pedido de casamento, feito sob as bênçãos do Paul, ao qual se seguiu uma das músicas mais lindas do britânico; o completo e arguto senso de oportunidade demonstrado por Kenzo; o espetáculo de romantismo no palco em frente ao qual os fãs e não-fãs choraram, estupefatos e certos de que, longe das retroescavadeiras, testemunhavam uma cena que jamais esqueceriam.

Tudo isso a parceira desse homem (já aflito após ter previsto intimamente as consequências daquele show à parte) invejou. Fosse esposa, namorada ou noiva, aspirou secretamente ao papel desempenhado por Caroline e Kenzo e invejou com todas as forças e fibras do seu ser. Mais que isso: refém desse sentimento ambíguo, dirigiu ao pobre homem a seu lado, se não uma caretinha de desgosto, ao menos um risinho malicioso, seguido de um beijo estalado no rosto que só podia ser interpretado como um largo gesto de consolo.

Aquele beijo dizia: embora talvez nunca tenha uma loucura assim, e eu até entendo que uma loucura assim não se realize todos os dias, eu te amo. Um alívio. 

Até que, para sorte de todos os homens em situação semelhante, a festa do Kenzo e da Caroline terminou. 

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