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Eu tenho medo



Embora não pareça amedrontada, a atriz Regina Duarte sorri após curtir a página no Facebook de uma campanha contra a violência urbana. Intimamente, porém, a atriz sabe que desempenhou o papel que lhe cabe e se sente contente por isso

Duas palavrinhas sobre o medo, o grande tópico em torno do qual a sociedade alencarina dilapida o intelecto nos dias que correm, tema de conversas animadas no shopping e na livraria, na fila do cinema e na barraca de praia.

Há uma semana, tive uma discussão ferocíssima com meu pai. Foi motivada por uma observação que fiz depois de visitar o condomínio onde mora uma amiga da minha namorada. Disse: as pessoas se encastelam, abdicam do espaço público, privam-se do contato com a cidade, blindam-se e depois vão reclamar da insegurança. Não querem uma cidade para viver; querem uma que lhes resguarde das ameaças. 

Mesmo depois de identificar o primeiro muxoxo no Haroldo, continuei: os bairros ficam desertos, ninguém anda nas calçadas, o carro é uma das poucas modalidades de interação com o tecido urbano, daí a enorme quantidade de reclamações sobre o trânsito e a situação da malha asfáltica. Resolvidos esses problemas, o cearense passaria a acreditar que vive numa das melhores cidades do mundo?

A pauta da classe média se resume a trânsito, qualidade das vias e roteiros de viagem?

À medida que falava, sentia uma catinguinha ruim de discurso onguista, mas no fim descobri que, onguista ou não, era nisso que acreditava. Por medo, preconceito, nojo ou seja lá que outro sentimento, o grosso do “biscoito fino”  da urbe – aquele segmento remediado/endinheirado – evita a todo custo o contato com o corpo viscoso de Fortaleza. Para eles, a última fronteira da cidade está no Benfica; além dela, há apenas o abismo.  

O pai provocou: se tivesse dinheiro, faria a mesma coisa. Quer o quê? Rapaz, os bandidos andam armados, a população é que está desarmada e pororó. Se o Estado não garante segurança, não pode impedir que o cidadão tome providências etc.  

Conhecendo o pai como conheço, antevendo um debate desgastante, julgando que um de nós estragaria completamente a noite do outro, impus uma medida drástica. Liguei o som do carro e fiz o pacto da mudinha.

Essa história boba de uma discussão doméstica ilustra o que vivemos hoje: a sociedade quer resposta imediata para o problema da violência. Reparem que a expressão “medidas concretas” frequenta cada vez mais as páginas dos jornais.

Os governos não têm essa resposta. A criminalidade aumenta. Os números estão aí para mostrar. Estão mesmo? O que mostram os números? Os assassinatos cresceram vertiginosamente, mas quem são essas vítimas? Onde vivem os mortos da guerra urbana que mata mais que os conflitos em países conflagrados, mas cujo epicentro parece estar localizado bem distante das áreas mais nobres da cidade?

Ouço todos os dias: a violência bate na porta. Acuso uma falsa demência e até certa burrice: antes não batia? O que fazia a violência quando não assaltava nem matava nos cruzamentos dos bairros luxuosos? Tirava férias em Iparana? Divertia-se no Cascatinha e nas Andréas?

A metrópole assombra-se. Campanhas são lançadas: Fortaleza sem Medo, Fortaleza Apavorada, Fortaleza da Paz, Fortaleza isso, Fortaleza aquilo. Campanhas não são tão eficazes em resolver o problema quanto em pressionar os gestores, que se fingem de mortos até um ano antes das eleições, período em que se renovam projetos e soluções milagrosas destinados a pacificar provisoriamente o desejo de que essa escalada brutal seja estancada. 

Conclusão: o medo se retroalimenta como nunca. Antes limitados ao boca a boca das padarias e restaurantes, os circuitos de propagação da onda agora encontraram um oásis: as redes sociais e os portais de notícia.

O “biscoito fino” vocaliza as dores do seu cotidiano. Tem à disposição um número quase infinito de canais, do blog aos jornais. Espalha mensagens no vidro traseiro dos carros em que pede mais paz e justiça. Desconsidera que há uma faixa numerosa da população para quem esse mesmo medo que agora nos amedronta sempre foi uma presença constante.

Se nos bairros da classe média o temor ainda bate à porta, noutros, mais afastados do nosso quadrado mágico, o mesmo sentimento já pediu abrigo e ocupa um lugar cativo na sala. É, a bem dizer, parte da família, que ainda não sabe a quem pedir socorro.  

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