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Como foi de viagem?




Antigamente, numa galáxia muito distante, os antropólogos investigavam lugares ainda intocados pela civilização. Percorriam vastidões do mapa à procura dos vestígios de como a humanidade havia sido nos primórdios. Desperdiçavam tempo e dinheiro na tentativa de entrar em contato com sociedades diferentes da ocidental, baseadas em valores exóticos, entendendo-as não sob a ótica própria, mas por meio dos mecanismos internos que regiam essas mesmas formações. Obedeciam a um procedimento que, se não lhes permitia total inserção num contexto diverso, ao menos garantia alguma possibilidade de se colocar no lugar do outro sem, contudo, empoleirar-se num patamar de superioridade. 

Nessa galáxia, o sumamente intrigante repousava numa zona similar à de Stalker, longínqua, feérica, uma autêntica América virginal, por exemplo, ilhas esquecidas pelo progresso ou tribos vagamente selvagens da Oceania, territórios cujas propriedades mágicas excediam as leis e regras de uma sociedade já plenamente moldada pela ética do capitalismo. 

As comunidades indígenas, os quilombolas, os grupamentos políticos primitivos, os segmentos minoritários e as manifestações religiosas embrionárias eram as principais preocupações desses desbravadores. Ora assumidamente colonialistas, ora não, pressupunham que era necessário compreender o que existia além das fronteiras do comum, do conhecido, do assente. 

E o que há hoje que extrapole os limites do comum, do conhecido e do assente?

O exótico, o virginal, as formações antediluvianas, os hábitos típicos de silvícolas, os costumes que nos parecerão extravagantes, as rotinas, as mentalidades engolfadas numa lógica inapreensível, as mudanças de paradigma provocadas por rupturas no horizonte de expectativas – tudo isso, garantem os especialistas, pode ser encontrado num só lugar: a vida fora da internet. 

Como em nenhum outro pedaço do mundo, é no universo off line que se concentram as formas mais significativas de vida aborígene. 

Essa mudança vem ocorrendo de forma incipiente, lenta, mas irrevogável. Estou falando da prática, ainda pouco difundida, de eliminar, por poucos dias ou semanas, todas as contas nas redes sociais e se manter distante dos computadores, das notícias e das informações compulsórias - algo equivalente às empreitadas de Franz Boas. Não checar nem deletar emails. Não atualizar nem seguir atualizações. Sentir-se provisoriamente apagado, inexistente, riscado das atividades interativas, inacessível, esquecido.

Ir dar uma espiada na “vida de verdade” tem se convertido cada vez mais nessa jornada ao selvagem coração do desconhecido. Um autêntico périplo à terra inexplorada, de onde se retorna, paradoxalmente, com um leque bastante limitado de grandes histórias de aprendizagem e superação prontas para consumo, que é, no fim das contas, o que todos esperamos escutar. 

É frustrante não conseguir rentabilizar essas vivências transformando-as numa espécie de manual de sobrevivência em ambientes desconectados. 

Você ficou fora da internet por um ano, foi morar numa cabana à beira da montanha ou fixou residência em um bairro pobre, tanto faz; manteve-se afastado de todo esse arsenal de gadgets; construiu para si uma rotina estoica de privação dos meios eletrônicos; permitiu-se matar o tempo de outras maneiras (lendo os melhores romances, pintando, bebendo, fazendo sexo ou apenas olhando as horas passarem); vasculhou o céu noturno em busca de respostas para as questões que inicialmente haviam guiado a decisão talvez radical de se desligar de tudo e experimentar novas sensações.

E agora, as pessoas perguntam, o que você tem para nos ensinar sobre tudo o que viu fora do mundo virtual? Que lições podemos tirar desse aprendizado, se é que houve um?

Nada e nenhuma, você responde, ainda surpreso com a descoberta de que nunca haverá um lá ou aqui, um fora ou dentro, uma matriz autêntica e segura de felicidade e uma outra que é exatamente o seu contrário.

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