Não sei se já falei que a Duda é uma graça. Talvez sim, talvez não, de modo que vale a pena repetir – caso já tenha falado –
ou afirmar – caso não tenha –: a Duda é uma graça.
Quando me pediu para que lhe escovasse os
cabelos, por exemplo, tratou de acrescentar que o desafio seria não apenas desembaraçar
as melenas, mas produzir uma partilha equânime da franja, que deveria despencar
à esquerda, dividida com rigor matemático. “Se não for assim, não consigo
dormir, titio”, disse.
Com isso, provocou 1) curiosidade com a
alternância randômica no uso das formas “tio” e “titio” e 2) e medo diante da responsabilidade
que era converter a massa informe de fios em um simpático arranjo capilar dotado de uma complexa e também
esotérica propriedade terapêutica que induzia ao sono.
Ciente das minhas
limitações, caprichei no penteado, desfiz os nós recalcitrantes e deixei tudo estirado,
lisinho, de caimento invejável, exatamente como as meninas de sete anos gostam
que fiquem os cabelos, espetados em direção ao solo como setas fluorescentes indicando o
sentido da força gravitacional.
Ao final, pedi três coisas: que avaliasse o resultado do meu trabalho; dissesse, sem receio de magoar o tio ou titio, se havia ficado como queria; e me desse uma nota de zero a dez.
Ao final, pedi três coisas: que avaliasse o resultado do meu trabalho; dissesse, sem receio de magoar o tio ou titio, se havia ficado como queria; e me desse uma nota de zero a dez.
Duda se olhou no espelho do banheiro. “Está bom. Não vou nem pro shopping, vou é dormir.” Foi o que disse.
Estava decidido a não ceder tanto espaço no peito à sensação de que tinha sido enganado por uma criança com pouco mais de um metro.
Afinal, é a primeira noite da Duda no meu
apartamento. A primeira e única, como fez questão de deixar claro umas poucas
horas depois de chegar à gaiolinha onde vivo e notar que a vista do lugar era
das piores, o piso, rachado, a cama, dura, a decoração, questionável, a
guirlanda pendurada à porta, anacrônica, e o catchup que veio com a pizza pedida
para o jantar, terrível.
O lado bom dessa auditoria informal foi que a Duda gostou muito das plantas no parapeito da janela; embora pouco convencida sobre a capacidade humana de ler tanta coisa numa única vida, também festejou a quantidade e a variedade de livros que o
titio pode reunir após esses anos todos mourejando exemplarmente.
Disso tudo, concluo: algumas crianças veem no exercício da crítica
radical uma forma superacessível de vingança contra o sistema de valores do mundo
adulto, esse vaso surpreendentemente quebradiço quando encarado pelo olhar despojado
de malícia.
Finalmente, é preciso reconhecer que o terreno,
apesar de murado e limpo de tempos em tempos, guarda de fato essa aparência de área
baldia onde se desovam corpos e se escondem os despojos dos assaltos praticados
nas redondezas.
Pra Duda, “essa vista podia ser bonita”. Bastariam uma piscina, uma escada e um cachorro.
Simples, criativo e prático - como apenas o Ivens Dias Branco conseguiria ser.
Simples, criativo e prático - como apenas o Ivens Dias Branco conseguiria ser.