Pular para o conteúdo principal

Postagens

Vocação: extremos

I. Sob qualquer ponto de vista, um jovem deficitário, adivinhou o médico. Como lhe restasse tempo de consulta, fez ainda a seguinte ressalva: “Detém-se excessivamente no vulgo, a vista dirigida às pequenezas, uma volúpia mal disfarçada para detalhes, que jamais passam despercebidos, mas, pelo contrário, potencializam-se indefinidamente, inflacionados por vontade autoalimentada”. Detalhes de que tipo?, quis logo saber, ambicioso de “exoexplicações”. Cores, cheiros – sobretudo cheiros, resumiu o especialista, cada cheiro e cada textura recebem, em casos assim, uma codificação específica cujo propósito é facilitar a busca futura. A exagerada importância dispensada às dobras do corpo, cicatrizes diminutas, demarcações ínfimas de pele, defeitos miúdos, oleosidade, suores etc. Um verdadeiro catálogo da carne. Deve existir alguma vantagem evolucionária nisso tudo, provocava, entre contrito e distraído. II. Como em qualquer situação, o lado ruim tinha contornos mais bem definidos. ...

A natureza-demônio

A mulher repetia: “É bom que haja demônios”. “De modo que possamos espantá-los”, continuava, a voz acusando profecia. “Mandá-los para bem longe ou, gesto mais amoroso que ousado, trazê-los para bem perto.” Disseram que a mãe herdou da vovó esse jeito enigmático, vezo sempre presente na hora do almoço, quando deitava falação. Vovó foi embora há dois anos. Morte arrastada, sofrida, contagiosa. Já perto do fim, assistida por uma enfermeira gorda cujo único divertimento era rever as temporadas de Friends , passou a anunciar descobertas científicas a cada rodada medicamentosa. Nos delírios de velha moribunda, garantia que os maias estavam redondamente enganados, que a luz tinha tripla manifestação física e que, ao invés de se expandir, o universo se contraía. “O mundo está encolhendo, meu filho.” Jamais duvidei. Uma das histórias que contou à mãe foi que demônios não são essas entidades esquivas, malignas, habitantes de uma faixa orbital evanescente, oposta a uma mais concreta, real. Criatu...

Anos de chumbo

Slayer sorri: talvez o maior pichador do NORTE/NORDESTE, morava na Serrinha. Faleceu em 2009 ou 2010. Único a estar presente em todas as Regionais de Fortaleza. Em 1992, embora não houvesse tantas razões para que alguém colecionasse canetas Pilot, eu colecionava. Quer dizer, havia um motivo, mas de natureza inconfessável. Por natureza inconfessável entendam o seguinte: sob hipótese nenhuma a mãe poderia ficar sabendo. Do contrário, surra. De maneira que, naquele tempo, acumular canetas não era uma atividade reconhecidamente banal entre garotos da minha idade. Garotos da minha idade preferiam bilas, piões, cartuchos de videogame e cartas de baralho pornô. As cartas podiam ser divertidas, admito, e de fato passávamos algumas tardes no quintal entretidos com elas. Soterradas por pilhas de álbuns de figurinha na última gaveta do guarda-roupa, minhas canetas vermelhas e azuis tinham certo magnetismo. Além do vermelho e do azul, havia outras duas cores de Pilot. Desgostava da v...

Peixe pequeno

P ermissão para tergiversar.  Permissão concedida. A ocasião convida à reflexão demorada. Efeméride tardia marca sete anos do blog.  Era julho de 2005 quando resolvi que seria saudável administrar um espaço privado na internet. Um cantinho onde me sentisse à vontade para flanar de cueca e sapatear na própria lama das ideias miraculosas. Tinha 24 anos. Assim nasceu o auspicioso “P&D”, blog de pouca chacota e muita lamúria. Influência direta da leitura d’O blog de Bagdá. Foi no P&D que dei início ao meu projeto Sanear II. Lá enterrei as primeiras fornadas de resíduos sólidos produzidas em escala industrial. Aqui estamos, sete anos depois. A expressão – P&D – foi cuidadosamente pinçada de um romance do Marcelo Mirisola. Para quem não lembra, o Mirisola era o escritor mais “polêmico” da época, título a que se juntava o de mais chato. Atualizava o blog clandestinamente, no trabalho, e algumas vezes em casa, nas horas de folga, e tanto num ca...

Fim de papo

Comentário ligeiro após rever Melancolia . A história do planeta azul, tristinho, que vem de muito longe para colidir com a Terra e apagar de vez esse tópico vergonhoso no Lattes do criador. Ainda no comecinho, quando Melancolia, o planeta, era facilmente confundido com mais um esquisitão estelar de perfil exuberante a fulgurar no céu de Gagárin e Armstrong, tudo corria bem. Sete bilhões de pessoas habitavam a mesma casa e se sentiam mais ou menos satisfeitos com os rumos da espécie. A constelação de Escorpião não era propriamente uma preocupação da humanidade. Sendo assim, tínhamos total liberdade para cumprir o que pedia a determinante-matriz de nossas vidas: consumir. Como acontece em qualquer filme de aventura, alguma coisa daria errado. O terror se justifica: mesmo distante, Melancolia não fazia crer que alteraria sequer um milímetro sua rota apenas para garantir que seguíssemos comemorando aniversário e réveillon. “Chacina interestelar”: tick. Fomos destruídos, co...
Foi sem intenção, sem vontade, sem querer, repetia havia muito tempo, uma gag sonora conhecida dos amigos. Certa noite fez-se a pergunta inevitável: o que acabara de falar carregava alguma verdade? Estava sendo absolutamente sincero? Favor justificar a resposta. Duvidava, mas duvidar tampouco era atividade que gozasse de uma áurea de inabalável respeitabilidade. Conhecia tipos asquerosos cuja obra dilapidava certezas e punha abaixo verdades escandalosas. Surpreendente não era que duvidasse da felicidade quando feliz ou da infelicidade quando infeliz. Surpreendia-o que o terreno jamais parecesse suficientemente concreto. Posso caminhar, afirmava, mas logo vinha o tropeço num desvão qualquer da calçada. Essa dúvida persistente, responsável por tombos mesmo quando encarava um pavimento ideal: essa dúvida recebia farto provimento de ração. Era alimentada. Equilibrava opostos, aproximava distantes. Exercício antigo, mas não ultrapassado: pronunciar vagarosamente cada palav...