A mulher repetia: “É bom que haja demônios”.
“De modo que possamos espantá-los”, continuava, a voz acusando profecia. “Mandá-los para bem longe ou, gesto mais amoroso que ousado, trazê-los para bem perto.”
Disseram que a mãe herdou da vovó esse jeito enigmático, vezo sempre presente na hora do almoço, quando deitava falação.
Vovó foi embora há dois anos. Morte arrastada, sofrida, contagiosa. Já perto do fim, assistida por uma enfermeira gorda cujo único divertimento era rever as temporadas de Friends, passou a anunciar descobertas científicas a cada rodada medicamentosa.
Nos delírios de velha moribunda, garantia que os maias estavam redondamente enganados, que a luz tinha tripla manifestação física e que, ao invés de se expandir, o universo se contraía.
“O mundo está encolhendo, meu filho.”
Jamais duvidei.
Uma das histórias que contou à mãe foi que demônios não são essas entidades esquivas, malignas, habitantes de uma faixa orbital evanescente, oposta a uma mais concreta, real.
Criaturas do dia a dia, demônios são bons e vão ao supermercado.
Demônios costumam dar bons maridos e boas esposas, além de ótimos pais e sogros prestimosos.
Demônios emprestam livros, refrescam-se no chafariz, acenam para o táxi, preferem pizza calabresa a mussarela, escrevem sonetos, tatuam-se.
Demônios anotam receitas, lamentam a segunda-feira, tomam sol, jogam frescobol.
Demônios mentem, se enamoram.
E se acontece de perderem o papel com o endereço buscado, não forçam o passo de volta, tímidos, mas erguem a cabeça, abordam o guardinha instalado à sombra e perguntam se a General Tibúrcio é para lá ou para cá, ao que emendam um muito obrigado cheio de mesuras demoníacas.
O que só reforça que demônios são legais, bonitos, têm cheiro característico, que leva dias para sair quando, antes e depois do sexo, gruda às roupas de baixo.
Se amam, não conhecem limites, no que se aproximam das pessoas de verdade, com CPF e problemas no ouvido.
Demônios alugam casa de praia? Apenas quando gostam de praia.
Podemos confiar nos demônios? Somente quando forem confiáveis.
Porque, como ocorre entre os da nossa espécie, há aqueles que se dedicam à trapaça, à dissimulação, ao ardil, passando a agir inescrupulosamente.
Um demônio apaixonado é, sem dúvida, a maior das danações a que se pode estar sujeito.
No mais das vezes, porém, apresentam-se cordatos, estáveis, donos de humor peculiar e dispostos a colaborar com o avanço do conhecimento.
Nas atuais circunstâncias, dizia a mulher, que não era a mãe nem a vovó, mas uma terceira.
Dizia: não incorre em erro quem procura amigar-se do demônio de natureza amistosa e, em parceria, recupera laços perdidos, volta a cair em danação e até mesmo a gozar.
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