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Fim de papo


Comentário ligeiro após rever Melancolia.

A história do planeta azul, tristinho, que vem de muito longe para colidir com a Terra e apagar de vez esse tópico vergonhoso no Lattes do criador.

Ainda no comecinho, quando Melancolia, o planeta, era facilmente confundido com mais um esquisitão estelar de perfil exuberante a fulgurar no céu de Gagárin e Armstrong, tudo corria bem.

Sete bilhões de pessoas habitavam a mesma casa e se sentiam mais ou menos satisfeitos com os rumos da espécie.

A constelação de Escorpião não era propriamente uma preocupação da humanidade. Sendo assim, tínhamos total liberdade para cumprir o que pedia a determinante-matriz de nossas vidas: consumir.

Como acontece em qualquer filme de aventura, alguma coisa daria errado.

O terror se justifica: mesmo distante, Melancolia não fazia crer que alteraria sequer um milímetro sua rota apenas para garantir que seguíssemos comemorando aniversário e réveillon.

“Chacina interestelar”: tick.

Fomos destruídos, conclui poeticamente o filme. Varridos do mapa, exterminados por uma contingência rochosa, expulsos de campo por um capricho do Big Bang.

Tanta reciclagem, tanta fé, tanta mentira, tanto recorde olímpico quebrado, tanto amor sonegado – para quê?

O pesadelo era que os esforços civilizatórios tivessem ido parar na vala comum.

Um exército inteiro de homo sapiens arrastado para a cova por uma esfera diminuta que, a exemplo de qualquer um, percorrera a existência colecionando mais fracassos que sucessos.

Um planeta com fama de loser, de triste, o que é pior.

Mas havia um lado bom.

Assim como Justine, a “heroína” depressiva que pisoteia as regras da etiqueta social, Melancolia, no melhor estilo “agente do caos”, transgride o mundo institucionalizado – o casamento, a família, o sexo, o trabalho etc.

Como em O anticristo, enquanto a “pessoa humana” festeja as peripécias da inteligência, a natureza opera mudanças drásticas, restituindo a desordem, rindo-se de qualquer exercício de disciplina e autocontrole.

Então, já perto do fim, fenômenos curiosos - e engraçados - antecipam o impacto: o racional cobre-se de medo, preferindo a morte à espera dolorosa.

A equilibrada rende-se ao choro e ao desespero.

Contra as expectativas, a doente recupera a sanidade.

E a criança, para quem a vida talvez fosse apenas sonho, fecha os olhos, à espera do desenlace.

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