I.
Sob qualquer ponto de vista, um jovem deficitário, adivinhou o médico.
Como lhe restasse tempo de consulta, fez ainda a seguinte ressalva: “Detém-se excessivamente no vulgo, a vista dirigida às pequenezas, uma volúpia mal disfarçada para detalhes, que jamais passam despercebidos, mas, pelo contrário, potencializam-se indefinidamente, inflacionados por vontade autoalimentada”.
Detalhes de que tipo?, quis logo saber, ambicioso de “exoexplicações”. Cores, cheiros – sobretudo cheiros, resumiu o especialista, cada cheiro e cada textura recebem, em casos assim, uma codificação específica cujo propósito é facilitar a busca futura.
A exagerada importância dispensada às dobras do corpo, cicatrizes diminutas, demarcações ínfimas de pele, defeitos miúdos, oleosidade, suores etc.
Um verdadeiro catálogo da carne.
Deve existir alguma vantagem evolucionária nisso tudo, provocava, entre contrito e distraído.
II.
Como em qualquer situação, o lado ruim tinha contornos mais bem definidos. Continuava: “Repare que certas marcas abundantes permanecem anônimas, voluntariamente anônimas, enquanto outras, porções menores, assumem destacados papel e comando”.
Foi para casa pensando. Influenciado por tudo que ouvira durante a manhã, não demoraria a concluir que prefere janelas a portas, bebidas cítricas a lácteas.
Lapiseira a caneta, frio a calor.
Sabonete a perfume, calça a bermuda.
Pulso livre a relógio, cabelo curto a comprido.
Orelhas a joelhos, sutiãs a calcinhas.
III.
O que o relatório médico não revelava, sequer insinuava, é que costuma anotar em um bloco as tarefas mais importantes: telefonar, escrever, quitar o aluguel, abraçar, cortar o cabelo.
Também permanecia um completo mistério a sutil inclinação a destacar o tópico de interesse do dia com um risco mais forte, ao qual se juntava, na tarefa de convocar a própria atenção, a dobra na pontinha da página.
É de praxe evitar contato visual com grande número de pessoas. No ônibus ou no elevador, dirige-se amigavelmente ao chão.
O tom de voz reserva-se o mais baixo dos decibéis.
E se lhe perguntam o que tem de melhor, responde: a visão periférica. É acuradíssima.
IV.
A visão periférica é essa capacidade de perceber volumes (objetos ou pessoas) fora do campo da visão central, em movimento ou repouso aparente.
Porque há falso movimento e calmaria dissimulada. Graças à visão periférica, distinguia um do outro com certa facilidade.
Sendo assim, tornou-se comum vê-lo perfazer, sem dificuldade, um ângulo de 180 graus, num giro imaginário de cabeça que se estende aos extremos, sonar à procura.
Uma visão periférica das boas atravessa biombos, tabelas, tempos, galáxias, cumprindo plenamente a função para a qual foi projetada: encontrar.
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