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Sobrevivemos

Talvez soe exagerado dizer que sobrevivemos a 2022 mais do que o vivemos, de modo a acentuar essa sensação de que se chega ao fim por teimosia, por sorte, por apego à vida, por um acaso de loteria. Mas, ao cabo dos doze meses, a impressão é bem essa. Um número a menos ou a mais, um passo para o lado ou para o outro, uma curva para lá ou para cá, e está-se vivo, involuntariamente. O vivido como contingência, casualidade, uma deriva sobre a qual a gente se habitua a imaginar que tem controle, embora nunca tenha realmente. É assim que olho não só para o vinte-e-dois, mas para a última quadra, uma provação que finalmente se encerra na próxima esquina do calendário. Um tempo custoso em sua dupla acepção: custoso de passar, ou seja, demorado, e custoso porque nos custou tanto e tanta gente. Tempo sem preço, de peso asfixiante, como essas noites encompridadas pela doença de que não se acorda jamais. Eis o desfecho pelo qual tenho esperado desde muito, porque já imaginava que esse momento cheg...

A arte de Bolsonaro

O que fazer com a arte inspirada em Bolsonaro, essa que vai deixando aos poucos o Palácio da Alvorada e enchendo a traseira de caminhões de mudança, num desfile de bizarrias? Falo desses quadros saturados estampando o ainda presidente e seu olhar vítreo dirigido ao horizonte, numa expressão que é um misto de enfado e prisão de ventre. Ou, ainda, revelando o seu corpo derreado numa cadeira e um sol atrás, de um lado uma criança puxando-lhe a manga da camisa implorando por atenção e, do outro, um Cristo premido em dor com traços evidentes de arrependimento. É uma arte curiosa, explicitamente de mau gosto, mas o gosto não é a categoria que interessa aqui. O que importa é a representação do chefe do Executivo feita nesses quatro anos. O que ela quer nos dizer realmente? A escolha das cores, as sombras, a indumentária, o ambiente e a dentição perfeita e hiperclareada, em absoluto contraste com o modelo real e seus caninos amarelos e tortos. Sabe-se que a arte nunca é fiel ao real, que o dis...

Avatar mágico

  Levei uns minutos olhando as fotos do aplicativo do avatar mágico, que transforma retratos pessoais em replicantes, personagens futuristas, elfos caboclos, cavaleiros de um mundo pós-apocalíptico e por aí vai. Enfim, toda sorte de cenários imaginados, quadros retocados, corpos melhorados e superfícies aplainadas em troca de uns poucos dados pessoais, depois armazenados e, segundo a empresa, descartados. Não fiz a experiência, porque custa algum dinheiro, mas fiquei espantado com o resultado espalhado pelas redes sociais, alguns prontamente adotados como nova foto do perfil, numa aceitação geral cujo sentido era mais ou menos o mesmo: isso aqui é arte. O estupor em si aponta que há algo na relação entre público e fotos que se situa numa outra escala, tem outra qualidade. O trabalho da inteligência artificial surpreendeu não porque se trata do primeiro aplicativo de edição de fotos, porque não é, mas porque faz o que se imaginou que uma IA não faria: arte. Uma arte que lembra as pi...

A estética do barraco grã-fino

Um barraco, nesse sentido de briga generalizada, é sempre um barraco, seja de rico ou de pobre. Naturalmente há pontos de contato entre o bafulê numa churrascaria do Zé Walter e outro na “área nobre”, mas existem muitas dessemelhanças também. Num barraco de rico, por exemplo, há sempre o apagamento das personagens, que se traduz num certo pudor de nomear e situar geograficamente o enredo e os implicados na fuzarca. Publicamente, quase nunca se sabe quem fez o quê e por que razão, embora, no privado, tudo se conheça e fale à vontade. Entre os endinheirados, evita-se a repercussão mais do que o episódio em si. O excesso preocupa porque dá na vista e prejudica os negócios, do qual fazem parte os arranjos matrimoniais. Nesse mundo que vive para o alheio, teme-se sobretudo a ruptura de um pacto de faz-de-conta que sustenta aparências e preserva máscaras. À baderna propriamente dita, segue-se uma verdadeira operação abafa, cujo principal objetivo é escamotear os motivos pelos quais fulano ar...

Transição

  Nos jornais, a palavra se destaca: transição. Como se, por passe de mágica, se passasse de um estágio a outro, entre os quais um interregno, a tal transição, servisse de ponto de virada, a novidade desde o início assegurada como se por estatuto. Depois de lá, já não se é mais o que se era. Eis o milagre da transição, fazer crer que o novo se extrai do velho por obra do mero escoamento do tempo. Tudo bem, as pessoas estão lá, entretendo-se com os afazeres e se havendo com as dificuldades do mundo. Mas, antes mesmo que chegassem, ainda com o terreno vazio, já se chamava de transição a esse intervalo desabitado sobre o qual havia potência e expectativa, e mais nada. Supõe-se que seja assim sempre porque sempre foi assim. E, do mesmo modo como se espera que entre um ano e outro algo se processe, e se instaure uma transformação na qualidade da vida e das pessoas, de uma transição também se espera o mesmo. Ou seja, que seja por si o ingresso para esse outro mundo, um passe-livre para a...

A casa que falta

  Seguia pela rua quando dei com o vazio da casa, um espaço antes habitado pela construção agora convertido em lacuna, um tempo passado ao qual eu não conseguia restabelecer materialidade. O objeto faltante carrega consigo também a memória do que foi? O que perdemos quando, do dia para a noite, uma parte da rua é arrebatada, dela não restando vestígio? A casa vazia era um dente extraviado no quarteirão, um molar cuja destinação não se conhecia. Apenas dois ou três dias atrás, lembro de ter passado por ali e percorrido o lugar desse jeito sem critério, um olhar aligeirado que devotamos às paisagens conhecidas, as do corpo e as da cidade. Vamos de rua em rua sem reconhecer-lhes diferença, cada uma acumulando-se, num continuum que forma aquilo que depois chamamos de tecido, mais por falta de palavra melhor do que por outra razão. De tanto vê-la sem ver, tinha me habituado à casa, uma pequena construção, eu agora imagino, cujas paredes azuis ou amarelas e telhado antigo e gasto por chu...

A pedra caída

  Tento apanhar o dia nas mãos. A filha sentada ao lado aguarda o fim, pergunta se já tenho um resultado, se terminei de trabalhar, faz cara de quem se contraria, em seguida finge dormir. Invento uma desculpa, digo que falta pouco, mas não falta nada. Tudo já feito e tudo já dito, nada feito e nada dito. Tento apanhar o dia, e não posso sequer pronunciá-lo. Não está a meu alcance inventariá-lo aqui, me deter na sua superfície, arrancar o dia à força e mostrá-lo a quem o queira ver, expor o dia e assim me sentir melhor porque é tão feio e agora não me pertence. Queria exibi-lo, dizer o que fosse. O dia pesado, essas horas todas durante as quais pensei em tocar no assunto, mas não disse nada. Calei porque não convém falar sobre o dia, ainda que me pertencesse não diria muito, mas não me pertence esse tempo. Depois andei à procura de livros naquele ambiente espaçoso e ultra-refrigerado de um lugar pelo qual não tenho simpatia, mas sem desejá-los de fato, sem querê-los realmente, o olh...