Talvez soe exagerado dizer que sobrevivemos a 2022 mais do que o vivemos, de modo a acentuar essa sensação de que se chega ao fim por teimosia, por sorte, por apego à vida, por um acaso de loteria.
Mas, ao cabo dos doze meses, a impressão é bem essa. Um número a menos ou a mais, um passo para o lado ou para o outro, uma curva para lá ou para cá, e está-se vivo, involuntariamente.
O vivido como contingência, casualidade, uma deriva sobre a qual a gente se habitua a imaginar que tem controle, embora nunca tenha realmente.
É assim que olho não só para o vinte-e-dois, mas para a última quadra, uma provação que finalmente se encerra na próxima esquina do calendário.
Um tempo custoso em sua dupla acepção: custoso de passar, ou seja, demorado, e custoso porque nos custou tanto e tanta gente. Tempo sem preço, de peso asfixiante, como essas noites encompridadas pela doença de que não se acorda jamais.
Eis o desfecho pelo qual tenho esperado desde muito, porque já imaginava que esse momento chegaria, à semelhança do fim do pesadelo.
Faltam três dias para que acabe, digo a mim mesmo, aliviado. Um ano que carrega mais do que os seus 365 dias e que arrasta consigo a carga de tudo que o antecedeu.
Em 72 horas, a gente cumpre esse rito essencialmente simbólico, mas cujos efeitos no real são sempre surpreendentes e com consequências palpáveis. Brindam-se aos votos, abraçam-se os mais chegados, festeja-se sob fogos mudos que explodem nesse estrépito visual, cheios de mensagens numa língua que não entendemos.
Tudo se passa como numa renovação de que a gente se investe, incorpora e em seguida projeta ao redor, certos de sua novidade e potência.
Suponho que é isso que se chame de virada, que é um modo adulto de se acreditar em Papai Noel sem parecer infantil, tampouco muito crente de que a vida é apenas isto e nada mais.
Convite a uma travessia, ela indica a possibilidade de que se estabeleça um marco imaginário a partir do qual se inicia uma outra coisa, como essas linhas no chão que rabiscamos nas brincadeiras de criança e que nos servem de margem para não cairmos nos abismos. Sem corpo ainda, sem nome e sem rosto, começa num ponto fixado no arbítrio da vontade.
Como são todas as decisões de ocasião que preenchem as listas de promessas feitas a fogo, mas que atendem a pretextos antigos, alguns não sabidos, outros apenas intuídos, afetos bons e ruins que se acumulam.
Passagem de ano, réveillon ou que outro nome tenha, o fenômeno assinala sempre que uma etapa se segue a outra, e, entre esta e aquela, num espaço que parece vazio, dá-se o imprevisto, o imponderável, o ato que restitui a vontade de estar no mundo e recoloca tudo noutros termos: agora não mais de sobrevida, mas de uma boa vida.
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