Pular para o conteúdo principal

Postagens

A estética do barraco grã-fino

Um barraco, nesse sentido de briga generalizada, é sempre um barraco, seja de rico ou de pobre. Naturalmente há pontos de contato entre o bafulê numa churrascaria do Zé Walter e outro na “área nobre”, mas existem muitas dessemelhanças também. Num barraco de rico, por exemplo, há sempre o apagamento das personagens, que se traduz num certo pudor de nomear e situar geograficamente o enredo e os implicados na fuzarca. Publicamente, quase nunca se sabe quem fez o quê e por que razão, embora, no privado, tudo se conheça e fale à vontade. Entre os endinheirados, evita-se a repercussão mais do que o episódio em si. O excesso preocupa porque dá na vista e prejudica os negócios, do qual fazem parte os arranjos matrimoniais. Nesse mundo que vive para o alheio, teme-se sobretudo a ruptura de um pacto de faz-de-conta que sustenta aparências e preserva máscaras. À baderna propriamente dita, segue-se uma verdadeira operação abafa, cujo principal objetivo é escamotear os motivos pelos quais fulano ar...

Transição

  Nos jornais, a palavra se destaca: transição. Como se, por passe de mágica, se passasse de um estágio a outro, entre os quais um interregno, a tal transição, servisse de ponto de virada, a novidade desde o início assegurada como se por estatuto. Depois de lá, já não se é mais o que se era. Eis o milagre da transição, fazer crer que o novo se extrai do velho por obra do mero escoamento do tempo. Tudo bem, as pessoas estão lá, entretendo-se com os afazeres e se havendo com as dificuldades do mundo. Mas, antes mesmo que chegassem, ainda com o terreno vazio, já se chamava de transição a esse intervalo desabitado sobre o qual havia potência e expectativa, e mais nada. Supõe-se que seja assim sempre porque sempre foi assim. E, do mesmo modo como se espera que entre um ano e outro algo se processe, e se instaure uma transformação na qualidade da vida e das pessoas, de uma transição também se espera o mesmo. Ou seja, que seja por si o ingresso para esse outro mundo, um passe-livre para a...

A casa que falta

  Seguia pela rua quando dei com o vazio da casa, um espaço antes habitado pela construção agora convertido em lacuna, um tempo passado ao qual eu não conseguia restabelecer materialidade. O objeto faltante carrega consigo também a memória do que foi? O que perdemos quando, do dia para a noite, uma parte da rua é arrebatada, dela não restando vestígio? A casa vazia era um dente extraviado no quarteirão, um molar cuja destinação não se conhecia. Apenas dois ou três dias atrás, lembro de ter passado por ali e percorrido o lugar desse jeito sem critério, um olhar aligeirado que devotamos às paisagens conhecidas, as do corpo e as da cidade. Vamos de rua em rua sem reconhecer-lhes diferença, cada uma acumulando-se, num continuum que forma aquilo que depois chamamos de tecido, mais por falta de palavra melhor do que por outra razão. De tanto vê-la sem ver, tinha me habituado à casa, uma pequena construção, eu agora imagino, cujas paredes azuis ou amarelas e telhado antigo e gasto por chu...

A pedra caída

  Tento apanhar o dia nas mãos. A filha sentada ao lado aguarda o fim, pergunta se já tenho um resultado, se terminei de trabalhar, faz cara de quem se contraria, em seguida finge dormir. Invento uma desculpa, digo que falta pouco, mas não falta nada. Tudo já feito e tudo já dito, nada feito e nada dito. Tento apanhar o dia, e não posso sequer pronunciá-lo. Não está a meu alcance inventariá-lo aqui, me deter na sua superfície, arrancar o dia à força e mostrá-lo a quem o queira ver, expor o dia e assim me sentir melhor porque é tão feio e agora não me pertence. Queria exibi-lo, dizer o que fosse. O dia pesado, essas horas todas durante as quais pensei em tocar no assunto, mas não disse nada. Calei porque não convém falar sobre o dia, ainda que me pertencesse não diria muito, mas não me pertence esse tempo. Depois andei à procura de livros naquele ambiente espaçoso e ultra-refrigerado de um lugar pelo qual não tenho simpatia, mas sem desejá-los de fato, sem querê-los realmente, o olh...

Final explicado

  Há por todo o canto da internet um mal terrível que atende pelo nome de “final explicado”, que é, por si mesmo e sem ironia, autoexplicativo. Trata-se do desfecho de uma narrativa ao qual se adicionam muitas camadas de uma explicação qualquer, razoável ou não, relevante ou não, manifestada em qualquer plataforma e orientada pela certeza de que o sentido último de uma obra de arte existe e pode ser alcançado. Da série de TV à novela da Globo, passando pelo filme da Marvel recém-chegado aos cinemas, a mania de explicar abarca tudo, numa pandemia explicativa, com o perdão da redundância. Nenhum mistério lhe opõe resistência, nenhum meandro está a salvo dessa devassa cognitiva à caça de audiência. Para a turma do “final explicado”, explica-se de tudo e tudo é passível de iluminação. Toda a matéria humana é críptica, esquiva, esotérica, não importa se a gente está falando de dragões feitos em CGI ou de uma produção em alemão com viagens no tempo e lances miraculosos de um “doppelgange...

O dilema da Copa

  De repente, o anúncio de convocação estampado na tela da TV se repetindo em looping. Lembro que há uma seleção de futebol que veste amarelo, ocasionalmente azul. Jogadores reunidos num país qualquer do outro lado do mundo numa época em que maioria de nós já está organizando confraternizações de fim de ano. Mas lá estão eles, catados em clubes da Europa, uma parte já com a fala engrolada pela mistura do léxico de origem e o estrangeiro. Neymar, por exemplo, fala brasileiro? Ou apenas a língua do dinheiro e da inconsequência, essa na qual ele aprendeu recentemente a se expressar tão bem? No supermercado já é Natal, mas o noticiário impõe que, antes do panetone e do salpicão com farofa, tenhamos ainda outro evento, a Copa. É uma mistura indigesta essa de expectativa ante uma vitória no futebol, ainda mais num ano como 2022 e com um time que tem Neymar como principal aposta, e o espírito natalino, que já vai convidando a exercícios de análise e temperança sobre a etapa que termina. ...

O fim do ano

  Para todos os efeitos, o ano termina no próximo domingo, dia 30 de outubro. Termina porque depois dele não se sabe o que será. Quer dizer, a gente até tenta adivinhar, inventa um porvir, mas saber mesmo, não sabemos. Digo que termina, mas não sei se termina. Suspeito que sim, mas a dúvida de que não permanece. E assim vamos até domingo, num compasso de espera, mas espera do quê? Será que dá? O ano termina porque é como se os últimos três antes dele convergissem para esse momento. Termina porque depois será outra coisa, e é essa outra coisa que se mantém no horizonte, suspensa, sem forma, sem rosto ainda, apenas a evocação de algo melhor. Mas termina? Penso em tudo, na pandemia e nos meses seguidos em casa. Depois na volta pro trabalho, nas aulas, nas ruas novamente repletas de gente, nas praças e na praia que não frequento mais há muito tempo. O que será de tudo depois de domingo? Não consigo supor que as coisas simplesmente se organizem como se nada tivesse acontecido. Algo há d...