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Barthes morreu

  Outro livro começa: Roland Barthes morreu em 26 de março de 1980. É um fato incontornável. Barthes morreu. A data registrada do óbito é a indicada na página: 26 de março. O ano é 1980. Não há que se discutir. Não existe mistério, tampouco duplo ou triplo sentido. Qualquer jogo de palavras. Mesmo para um estruturalista, linguista, apaixonado, um escritor, um esteta, tudo que se queira dizer de Barthes, inexiste complexidade na sentença que se anuncia. Morreu pouco menos de três meses antes de eu nascer. Isso não tem importância também. Cito apenas porque, para calcular esse intervalo entre março e junho, precisei me concentrar e contar nos dedos. Tenho feito isso sempre que a realidade escapa. Apelo aos dedos, estiro todos os da mão e começo a contar, como se retornasse ao infantil, ao maternal, ao primórdio, esse mesmo tempo do qual minha filha agora vai se despedindo, porque já não precisa do auxílio das mãos para fazer suas operações matemáticas. Usa a cabeça, as ideias, repro...

Bar do hotel

  Começo o livro: uma mulher estava sentada no bar do hotel... Não tenho paciência para continuar, sabe-se lá por quê. Quer dizer, acho que sei. Está na cara que essa mulher não existe, esse bar não existe, esse hotel não existe. Nada na frase “uma mulher estava sentada no bar do hotel” existe de fato. Tudo inventado, e não que isso seja um problema. Não é. O problema do problema é a parte calculada. Logo imagino todos os passos da construção da personagem, quem é a mulher, o que faz, seus motivos, se os tem explicitados ou se os carrega no bolso, disfarçados como papel de bombom. Amassados e levados aonde vá. A mulher no bar do hotel é impalpável. Tenho preguiça de acompanhá-la porque sei que não está lá, é uma mentira, um artifício, a mão exposta de quem conta a história. A atitude de quem se põe a contar a história já causando, de partida, um certo fastio. Interrompo, vou dormir. Não quero dormir. Pego outro livro, mas ler também está fora de cogitação. Escrevo, mas em seguida...

Pós-escrito

Escrever entre palavras, nos espaços que se insinuam, nas brechas e sobras, no que falta e aparece. Escrever somente com o parco, o ralo, o falto. Escrever por desleixo, porque não há mais nada que fazer senão isso. Escrever nesse intervalo, nessa sombra, no tempo hiato, no prazo de fim e espera de começo. Escrever como quem empreende uma obra de engenharia com palitos de picolé. Escrever como quem não escreve. Escrever para deixar de lado, para apagar, para rasurar. Escrever contra o tempo, a favor do vento e da maré. Escrever contra a própria escrita e seu gesto.

O que colocar no lugar do São Pedro

  Ciente de que os serviços do edifício São Pedro chegaram ao fim e o prédio já não tem tanta serventia, convocamos os fortalezenses a pensar no futuro e a escolher, desde já, o que colocar no lugar do navio encalhado e prestes a ir a pique. Como tudo é democrático na capital cearense, principalmente a ruína, queremos deixar que o morador da cidade decida. Para tanto, as autoridades locais lançam um concurso muito concorrido cuja finalidade é ocupar o espaço vazio da nau naufragada que o tempo e a negligência compartilhada dos setores público e privado, além dos próprios habitantes, ajudaram diligentemente a destroçar. As opções no cardápio abundam, das mais tradicionais às mais modernas, entre as quais estão a farmácia, o bistrô ou um restaurante regional climatizado com estacionamento próprio e cercadinho VIP, envolvido em concertina elétrica e alarmes anti-pedinte, com reserva anual para o Réveillon da Praia de Iracema. Há ainda o clássico açaí, ainda muito solicitado pelos cit...

Exercícios de caligrafia

  Insisto com a caligrafia depois de tanto tempo, a letra torta ainda, o traço derreado, os arcos imperfeitos, retas curvas e curvas que não se completam. A letra inteira imprestável a que outro que não eu a leia e entenda. Mesmo eu, autor e leitor, tenho dificuldades de apanhá-la na mão após deitá-la no papel. Se volto apenas um dia depois, já não sei mais o que disse, frases inteiras como que emaranhadas, garranchos enredados sem que nada lhes dê feitio de inteligibilidade. Mas continuo, tenho de avançar. A prova está marcada para o fim do ano, até lá preciso consertar a grafia. A filha ajuda de vez em quando, faz de conta que é professora e passa a me dar lição sobre como melhorar o desempenho. Faça assim, papai, diz, caprichosa, para em seguida levar a mão à cabeça em desaprovação, um gesto teatral que faço apenas para que repita. De onde vem esse gesto, eu não sei. Tento lembrar de quando foi a última vez que escrevi de maneira límpida, que as linhas se sucederam sem atropelo ...

Crie uma senha

  Crie uma senha de oito dígitos com pelo menos um múltiplo de dois e um primo, um algarismo divisível por três e outro que represente o número mínimo de títulos de Copa vencidos por Brasil e Alemanha, alternando-se caracteres em caixa baixa e alta, de modo que às baixas se sucedam às altas em razão de 3, sem repetições. A cada sequência de dois números, interponha uma exclamação ou interrogação, e a cada três insira um caractere a seu gosto, excetuando-se a arroba, que pode causar leitura errada do sistema. Repita a senha. Antes, marque todos os quadrinhos com semáforo entre os vinte dispostos em quatro sequências que misturam semáforos em si e apenas pedaços da haste ou poste de sustentação do semáforo, procedimento que instaura sempre essa terrível dúvida que nos leva a perder entre dez e quinze segundos pensando se temos algum tipo de déficit de inteligência ou se todas as pessoas passam por essa mesma dificuldade quando precisam criar uma senha. Concluído o processo, esteja a...

Paulo Guedes

  O ministro Paulo Guedes é o brasileiro mais feliz e bonito do país depois de Rodrigo Hilbert. PG, me permito chamá-lo assim, cresce progressivamente, enquanto a maioria de nós é pura estagnação, quando não descarado retrocesso, e por onde se olha há um déficit de tudo, de comida ao combustível. Mas, vejam só, PG é feliz naturalmente, na bonança e na escassez (principalmente na escassez). É quando o prato míngua e a carestia campeia sem freios de norte a sul que PG se regozija, exulta e, embevecido diante da bomba marcando sete reais o litro e da bandeja de patinho espetando 50 reais, diz: parla! Um renascentista às avessas, PG vê sua obra em toda parte, da sopa de osso à gordura de boi e ao pé de frango, que substituem a carne na mesa, mas por puro gosto e adesão às suas ideias. Jamais por falta de dinheiro. Da inflação à exorbitância do real em relação ao dólar, do desemprego à fuga de capitais e fechamento de empresas, porém, nada o desanima. Pelo contrário, as pioras sucessiva...