Insisto com a caligrafia depois de tanto tempo, a letra torta ainda, o traço derreado, os arcos imperfeitos, retas curvas e curvas que não se completam. A letra inteira imprestável a que outro que não eu a leia e entenda. Mesmo eu, autor e leitor, tenho dificuldades de apanhá-la na mão após deitá-la no papel. Se volto apenas um dia depois, já não sei mais o que disse, frases inteiras como que emaranhadas, garranchos enredados sem que nada lhes dê feitio de inteligibilidade.
Mas continuo, tenho de avançar. A prova está marcada para o fim do ano, até lá preciso consertar a grafia. A filha ajuda de vez em quando, faz de conta que é professora e passa a me dar lição sobre como melhorar o desempenho. Faça assim, papai, diz, caprichosa, para em seguida levar a mão à cabeça em desaprovação, um gesto teatral que faço apenas para que repita. De onde vem esse gesto, eu não sei.
Tento lembrar de quando foi a última vez que escrevi de maneira límpida, que as linhas se sucederam sem atropelo na folha, que as palavras do dia anterior continuavam a ter serventia um ou dois dias depois. Talvez na escola, não sei, ou durante os estudos do vestibular, quando, por força da raiva, impus a mim mesmo rotina de exercícios duríssimos e prolongados que agora não tenho nem disposição nem tempo para cumprir. Permito que a letra siga sua trajetória de queda. Tento evitar que se degenere por completo. Porque é assim que vejo: a ausência manuscrita é a incapacidade da escrita em si.
Disse que espero consertá-la, e é disso que se trata. Um objeto quebrado que tento recuperar depois de anos de negligência e de desgaste continuado durante o qual mantive com essa modalidade de escrita apenas uma relação funcional. Eu a usava quando tinha um exame nos próximos dias ou meses, exatamente como agora.
O tempo se aproxima, penso no desespero que é tentar se fazer entendido numa página e não conseguir, tudo dito e não dito, escrito e não escrito. Perdido de antemão apesar de todo empenho, porque nenhuma mensagem se revela além da forma. E a forma da letra é sua caligrafia, que preciso retomar se quiser aprovação.
Outro dia recebi em casa um pacote. No verso, uma letra bonita, escrita em tinta de caneta porosa azul. Apenas endereço e números, além do nome. Um livro enviado pelo Correio havia chegado, mas, diferentemente dos outros, as informações que constavam do remetente eram escritas de próprio punho, e não digitadas e impressas. Alguém as escrevera. A marca estava ali, na forma. O F de Fortaleza muito particular, as vogais, as demais consoantes.
Desejei então ter eu mesmo a minha letra de antes, de quando era jovem e escrevia no caderno, anotando matérias que depois revisitava. Foi quando comecei a escrever novamente no papel. Reuni caneta e lápis, separei material com um zelo que não costumo ter. Deixei de lado na mesa. Quando tudo termina, o dia encerrado e as obrigações feitas total ou parcialmente, não importa, escrevo uma folha. Repito isso há quase um mês, sem grandes avanços.
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