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Pós-escrito

Escrever entre palavras, nos espaços que se insinuam, nas brechas e sobras, no que falta e aparece. Escrever somente com o parco, o ralo, o falto. Escrever por desleixo, porque não há mais nada que fazer senão isso. Escrever nesse intervalo, nessa sombra, no tempo hiato, no prazo de fim e espera de começo. Escrever como quem empreende uma obra de engenharia com palitos de picolé. Escrever como quem não escreve. Escrever para deixar de lado, para apagar, para rasurar. Escrever contra o tempo, a favor do vento e da maré. Escrever contra a própria escrita e seu gesto.

O que colocar no lugar do São Pedro

  Ciente de que os serviços do edifício São Pedro chegaram ao fim e o prédio já não tem tanta serventia, convocamos os fortalezenses a pensar no futuro e a escolher, desde já, o que colocar no lugar do navio encalhado e prestes a ir a pique. Como tudo é democrático na capital cearense, principalmente a ruína, queremos deixar que o morador da cidade decida. Para tanto, as autoridades locais lançam um concurso muito concorrido cuja finalidade é ocupar o espaço vazio da nau naufragada que o tempo e a negligência compartilhada dos setores público e privado, além dos próprios habitantes, ajudaram diligentemente a destroçar. As opções no cardápio abundam, das mais tradicionais às mais modernas, entre as quais estão a farmácia, o bistrô ou um restaurante regional climatizado com estacionamento próprio e cercadinho VIP, envolvido em concertina elétrica e alarmes anti-pedinte, com reserva anual para o Réveillon da Praia de Iracema. Há ainda o clássico açaí, ainda muito solicitado pelos cit...

Exercícios de caligrafia

  Insisto com a caligrafia depois de tanto tempo, a letra torta ainda, o traço derreado, os arcos imperfeitos, retas curvas e curvas que não se completam. A letra inteira imprestável a que outro que não eu a leia e entenda. Mesmo eu, autor e leitor, tenho dificuldades de apanhá-la na mão após deitá-la no papel. Se volto apenas um dia depois, já não sei mais o que disse, frases inteiras como que emaranhadas, garranchos enredados sem que nada lhes dê feitio de inteligibilidade. Mas continuo, tenho de avançar. A prova está marcada para o fim do ano, até lá preciso consertar a grafia. A filha ajuda de vez em quando, faz de conta que é professora e passa a me dar lição sobre como melhorar o desempenho. Faça assim, papai, diz, caprichosa, para em seguida levar a mão à cabeça em desaprovação, um gesto teatral que faço apenas para que repita. De onde vem esse gesto, eu não sei. Tento lembrar de quando foi a última vez que escrevi de maneira límpida, que as linhas se sucederam sem atropelo ...

Crie uma senha

  Crie uma senha de oito dígitos com pelo menos um múltiplo de dois e um primo, um algarismo divisível por três e outro que represente o número mínimo de títulos de Copa vencidos por Brasil e Alemanha, alternando-se caracteres em caixa baixa e alta, de modo que às baixas se sucedam às altas em razão de 3, sem repetições. A cada sequência de dois números, interponha uma exclamação ou interrogação, e a cada três insira um caractere a seu gosto, excetuando-se a arroba, que pode causar leitura errada do sistema. Repita a senha. Antes, marque todos os quadrinhos com semáforo entre os vinte dispostos em quatro sequências que misturam semáforos em si e apenas pedaços da haste ou poste de sustentação do semáforo, procedimento que instaura sempre essa terrível dúvida que nos leva a perder entre dez e quinze segundos pensando se temos algum tipo de déficit de inteligência ou se todas as pessoas passam por essa mesma dificuldade quando precisam criar uma senha. Concluído o processo, esteja a...

Paulo Guedes

  O ministro Paulo Guedes é o brasileiro mais feliz e bonito do país depois de Rodrigo Hilbert. PG, me permito chamá-lo assim, cresce progressivamente, enquanto a maioria de nós é pura estagnação, quando não descarado retrocesso, e por onde se olha há um déficit de tudo, de comida ao combustível. Mas, vejam só, PG é feliz naturalmente, na bonança e na escassez (principalmente na escassez). É quando o prato míngua e a carestia campeia sem freios de norte a sul que PG se regozija, exulta e, embevecido diante da bomba marcando sete reais o litro e da bandeja de patinho espetando 50 reais, diz: parla! Um renascentista às avessas, PG vê sua obra em toda parte, da sopa de osso à gordura de boi e ao pé de frango, que substituem a carne na mesa, mas por puro gosto e adesão às suas ideias. Jamais por falta de dinheiro. Da inflação à exorbitância do real em relação ao dólar, do desemprego à fuga de capitais e fechamento de empresas, porém, nada o desanima. Pelo contrário, as pioras sucessiva...

Desafio do silêncio

  Ao contrário do que pode ter parecido, o desafio do silêncio não consiste exatamente na falta de conversa ou no inteiro mutismo carente de assunto, mas numa prática comunicacional na qual não estejam presentes palavras muito gastas e cujo uso cause aborrecimento supremo e dores de cabeça planaltinas. Exemplos: presidente ou pandemia, ou presidente e CPI, ou quaisquer outras que, empregadas ou ouvidas de relance, provoquem o mesmo efeito de garfo arranhando o fundo da panela, que entre os cearenses se chama de gastura. O propósito expresso desse jogo de armar com peças faltando é estimular a imaginação, aquietar o juízo por dez ou quinze minutos, não mais que isso, forçar uma parada nessa necessidade constante e irrefreável de estar permanente e incansavelmente atualizado a respeito de certos assuntos. Sabem quando os computadores travam e os forçamos a desligar por meio daquele comando? Pois bem. É quase isso. Experimentem. É simples, talvez não no começo, mas, quando se pega o ...

Mania de pulseira

Os cearenses têm muitas manias, algumas boas e outras ruins. Entre as boas está a de andar arrastando a chinela, hábito que produz um conforto porque me faz lembrar de minha vó tangendo galinha no terreiro de casa.  E há as manias não tão boas. Cito uma apenas: a da pulseira. Mas não qualquer pulseira, de tira de pano ou de Michelin, de um artesão conhecido ou comprada no camelô para regular as energias do corpo. Falo da pulseira VIP, essa confeccionada em cores berrantes, quase sempre amarelo, verde ou azul, que se destacam ao longe, adornando pulsos delgados, de coloração branca, com pelos sedosos ou abrasados por um fim de semana na praia (mas não qualquer praia, uma praia mais afastada, com ares primitivos e comunidades de pescadores mas que aceite cartão e Pix). Quem usa a pulseira VIP quer dizer que foi a algum lugar aonde só os que a portavam podiam entrar, ou seja, é um passe de entrada. Não uma senha vulgar ou coisa que o valha, mas objeto exibível e de valor sem o qual a...