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Produtividade

 Hoje levantei mais cedo, separei tudo que tinha pra fazer, tomei café, deixei de um lado livros pra estudar e do outro cadernos para anotar, removi coisas que não usaria de imediato, liguei o computador, abri abas do navegador, tentei me limitar ao que era estritamente necessário, cliquei no que era apenas primordial. Acionei o processador de texto, escrevi uma ou duas frases, parei, tomei mais café, pensei que não é bom tomar tanto café assim, e ainda no meio de uma pandemia, e sobretudo num dia como este 31 de março, mas aí já era tarde e eu tinha bebido três xícaras do café que eu mesmo faço, três colheres de pó e duas de açúcar para um quarto de água na panela, de modo que quase sempre resulta num café mais forte, o que me deixa distraído em vez de concentrado, a atenção fisgada por qualquer movimento da casa, a cortina que estala, a geladeira que bipa, o gato que ronrona. Então coloco fones de ouvido, mas logo essa invasão auricular começa a incomodar, tiro os fones, fecho as...

Manuscrita*

  A letra degenera? A minha, sim, a manuscrita, a que sai do encontro da ponta da caneta ou do lápis com a superfície do papel ou de outra qualquer, a que resulta do movimento repetitivo do pulso, que inclina a cada nova curva do alfabeto. Falo dessa letra miúda, dançante, longilínea ou cartesiana: a letra muda. A minha foi degenerando, degenerando, até chegar ao estado atual de garrancho, de coisa única, emaranhado de fios que apenas remotamente guardam alguma semelhança com a letra bonita, quase feminina, da 7ª série. A dúvida é se a falência da letra corresponde a outra, pessoal, moral, estética, ou se uma não tem que ver com a outra, se são domínios separados da experiência, sendo a letra uma ferramenta que se deforma gradualmente sem que possamos fazer nada a respeito. Será assim? É a letra um instrumento de corte que se desgasta naturalmente ao limite da cegueira? É a letra reflexo de uma modalidade de pensamento retilíneo, contínuo, compassado, de palavras que se juntam vaga...

Envelheço na pandemia

Vasculhava a estante à procura de sabe-se lá o quê quando parei numa foto da festa junina da escola da minha filha em 2019. É uma imagem recente, reconheço a camisa que usava. Tudo nela ainda se mantém fresco. Mas pareço outra pessoa. Mais jovem, menos cabelo branco, mais sorridente, menos pesaroso do que hoje. Desconfiado, tento me convencer de que era o ângulo, a luz, o filtro, mas sei que não era. Ninguém da família havia morrido até então. Nunca ouvira falar de Covid, tampouco de vacina ou de cloroquina. Tinham se passado apenas seis meses de governo Bolsonaro. Eis a diferença entre o eu de agora e aquele. Menos de dois anos depois, tenho a sensação de que envelheci mais do que esses pouco mais de mil dias. Envelheci mais do que supunha que envelheceria, do que costumo envelhecer de um ano para o outro, mais do que os 40 anos completados em meio à quarentena fazem crer. Vou ao espelho confirmar essa teoria. Checo a raiz dos cabelos, inspeciono rugas, mapeio a fronte e o alto da cab...

Dia de sol, dia de chuva

Cearense que é cearense festeja o azul-escuro da chuva e se enfia no primeiro agasalho comprado na Renner mal o termômetro bate os 24 graus Celsius, mas logo se enfada se o aguaceiro levar mais que três dias, engelhando a alma e plantando uma frieira existencial nos cantinhos do pensamento. Roupas secando atrás da geladeira, parede fria, azulejo que não dá pra andar descalço, a toalha fedida, uma goteira ou infiltração cujo conserto há anos vem adiando e de repente resolve aparecer e cobrar seu preço, mas, no meio da crise, quem pode se ocupar de resolver a pendência doméstica tão prosaica, sobretudo porque o dinheiro está curto? O tempo bonito pra chover tem um ônus, e logo entendemos que nem tudo são flores nesse friozinho aguamirangado, tão instagramável e propício a garrafas de vinho abertas e repositórios de rolhas e outros detalhes da vida exibível que rapidamente se enxameiam pelas redes enquanto Heráclito Graça e Beira Mar vão se enchendo. No quarto dia, porém, quando já se t...

Se o navio encalhado fosse no Ceará

 Penso no navio ainda encalhado depois de três dias, mas agora noutra chave, a da proximidade, do deslocamento geográfico, vendo-o não naquela lonjura que é o Canal de Suez, mas aqui, atravessado na Barra do Ceará, por exemplo, empacando o fluxo de barcos que vão e vêm feito uma SUV pifada no meio da Dom Luís na quentura das 18 horas. O rumorejado de carrões engatilhados, para seguir com a metáfora, a impaciência do povo metido nos utilitários com vidros cobertos de adesivo “Eu freio para animais”, a estridência da buzina do carro de luxo, o enxameado de motos, as dezenas de Onix de aplicativo esperando sua vez de passar. Nas redes, o governador, sereno mas enfático, anunciando em live uma força-tarefa interinstitucional, mobilizando de uma vez governo e iniciativa privada, lançando edital e anunciando suspensão das dívidas de quem se achar paralisado no trânsito/mar, se solidarizando com a tripulação e rogando ao povo cearense para que tenha esperança de que o carro/navio será fin...

O triste adeus a Cid Gomes (OP, 2014)

 É com um banzo indisfarçável que o alencarino vê aproximar-se o fim da era Cid Gomes. Nunca antes na história do Ceará um gestor concluiu oito anos de governança colecionando uma lista interminável de episódios cujo denominador comum é a fanfarronice e a absoluta falta de pudor. Em dois mandatos consecutivos, período no qual o cearense redefiniu os conceitos de estripulia, Cid flertou com o abismo ao dar uma tainha do capô de um jipe e deixou a vergonha de lado ao saltar de tirolesa no Cocó. Sucessor no trono estadual, Camilo Santana terá dificuldades para ombrear os trabalhos do tutor. Terá coragem? Sobrará desenvoltura? Do incrível voo da sogra, cartão de visitas do governador, ao bufê com bombinhas de camarão no Palácio do Abolição, passando por shows para inaugurar equipamentos públicos, a gestão do engenheiro civil prodigalizou o que há de anedótico na política. Midas circense, o Ferreira Gomes transformou a performance em capital eleitoral e, como numa peça de Zé Celso Marti...

A arte de evitar a solução definitiva

O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga. Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico deputado Feliciano evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local vê-se confrontada com um problema, a saída costumeira é recorrer ao paliativo - ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer? Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto. Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria ...