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Se o navio encalhado fosse no Ceará

 Penso no navio ainda encalhado depois de três dias, mas agora noutra chave, a da proximidade, do deslocamento geográfico, vendo-o não naquela lonjura que é o Canal de Suez, mas aqui, atravessado na Barra do Ceará, por exemplo, empacando o fluxo de barcos que vão e vêm feito uma SUV pifada no meio da Dom Luís na quentura das 18 horas.

O rumorejado de carrões engatilhados, para seguir com a metáfora, a impaciência do povo metido nos utilitários com vidros cobertos de adesivo “Eu freio para animais”, a estridência da buzina do carro de luxo, o enxameado de motos, as dezenas de Onix de aplicativo esperando sua vez de passar.

Nas redes, o governador, sereno mas enfático, anunciando em live uma força-tarefa interinstitucional, mobilizando de uma vez governo e iniciativa privada, lançando edital e anunciando suspensão das dívidas de quem se achar paralisado no trânsito/mar, se solidarizando com a tripulação e rogando ao povo cearense para que tenha esperança de que o carro/navio será finalmente rebocado antes do Natal.

O ex-governador, voluntarioso, chegando à cidade a jato e metendo-se entre os veículos para, ele mesmo, mangas arregaçadas, ajudar a retirar a embarcação. Para tanto, aboleta-se num trator instalado na cabeceira de uma duna ou na quina da ponte metálica ou no alto do pavimento do velho aquário, fazendo lembrar ao gentio que, muitos anos atrás, defendeu a construção de um estaleiro por estas bandas e que, se a ideia tivesse prosperado, hoje não estaríamos passando por esse aperreio.

E, num gesto desatinado, salta já de sunga nos verdes mares bravios para, sem esperar Bombeiros ou cientistas do Labomar, convocados sempre a pretexto de qualquer coisa que aconteça no litoral, inspecionar o casco do navio à procura de avarias ou de ideia melhor que faça esse trambolho sair de lá.

Enquanto autoridades batem cabeça e tentam, cada uma a seu modo, entender o que, quando e como fazer, alvoroçadas ante a gravidade do episódio, desarticuladas e despreparadas para o pior, o empreendedorismo do cearense fala mais alto e já fareja oportunidade de negócio.

Num segundo, uma nova farmácia é aberta em um dos trechos de maior fluxo do engarrafamento e em prazo recorde de 24 horas, entre sua concepção, contratação de funcionários, aluguel de ponto e instalação de energia e internet, o que de imediato cacifa o CEO da rede ao troféu Tilápia de Ouro daquele ano.

À chegada da drogaria se segue uma revoada de ambulantes, vendedores de acarajé, pulseiras letreiros, toda sorte de bijuterias e artesanato em palha de coco, areia colorida, pirocópteros com neon, massageador de couro cabeludo, quadro da índia Iracema, paisagens do litoral cearense e por aí vai, formando-se espontaneamente um corredor comercial com fluxo de capital superior ao da Monsenhor Tabosa e ao do setor branco do Centro Fashion.

Até que, convencidos de que nada nem ninguém terá condições ou disponibilidade de recursos para remover o barco/carro e liberar o fluxo, uma nova avenida contornando o nó górdio é apresentada como solução para o obstáculo.

Do que era impasse, portanto, fez-se razão de comemoração, visto que a obra iria requerer planejamento, projetos e empréstimo em algum banco de fomento e sua conclusão, segundo estimativas dos gestores, calharia de coincidir, vejam que surpreendente, com as próximas eleições.

Assim, entendeu-se que havia ali uma feliz ocasião de mostrar ao nativo da capital que, embora o problema não houvesse sido de todo resolvido, como de fato não havia, a cidade ganhara uma nova avenida e, mais que isso, um ponto turístico sobre o qual o trade já projetava auferir ganhos a partir do ano seguinte.

E foi assim que Fortaleza, que já dispunha do Mara Hope, uma obra náutica e artística e ícone global em termos de embarcações empacadas, ganhou mais um “Navio Encalhado” para chamar de seu.

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