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Envelheço na pandemia

Vasculhava a estante à procura de sabe-se lá o quê quando parei numa foto da festa junina da escola da minha filha em 2019. É uma imagem recente, reconheço a camisa que usava. Tudo nela ainda se mantém fresco. Mas pareço outra pessoa. Mais jovem, menos cabelo branco, mais sorridente, menos pesaroso do que hoje. Desconfiado, tento me convencer de que era o ângulo, a luz, o filtro, mas sei que não era. Ninguém da família havia morrido até então. Nunca ouvira falar de Covid, tampouco de vacina ou de cloroquina. Tinham se passado apenas seis meses de governo Bolsonaro. Eis a diferença entre o eu de agora e aquele. Menos de dois anos depois, tenho a sensação de que envelheci mais do que esses pouco mais de mil dias. Envelheci mais do que supunha que envelheceria, do que costumo envelhecer de um ano para o outro, mais do que os 40 anos completados em meio à quarentena fazem crer. Vou ao espelho confirmar essa teoria. Checo a raiz dos cabelos, inspeciono rugas, mapeio a fronte e o alto da cab...

Dia de sol, dia de chuva

Cearense que é cearense festeja o azul-escuro da chuva e se enfia no primeiro agasalho comprado na Renner mal o termômetro bate os 24 graus Celsius, mas logo se enfada se o aguaceiro levar mais que três dias, engelhando a alma e plantando uma frieira existencial nos cantinhos do pensamento. Roupas secando atrás da geladeira, parede fria, azulejo que não dá pra andar descalço, a toalha fedida, uma goteira ou infiltração cujo conserto há anos vem adiando e de repente resolve aparecer e cobrar seu preço, mas, no meio da crise, quem pode se ocupar de resolver a pendência doméstica tão prosaica, sobretudo porque o dinheiro está curto? O tempo bonito pra chover tem um ônus, e logo entendemos que nem tudo são flores nesse friozinho aguamirangado, tão instagramável e propício a garrafas de vinho abertas e repositórios de rolhas e outros detalhes da vida exibível que rapidamente se enxameiam pelas redes enquanto Heráclito Graça e Beira Mar vão se enchendo. No quarto dia, porém, quando já se t...

Se o navio encalhado fosse no Ceará

 Penso no navio ainda encalhado depois de três dias, mas agora noutra chave, a da proximidade, do deslocamento geográfico, vendo-o não naquela lonjura que é o Canal de Suez, mas aqui, atravessado na Barra do Ceará, por exemplo, empacando o fluxo de barcos que vão e vêm feito uma SUV pifada no meio da Dom Luís na quentura das 18 horas. O rumorejado de carrões engatilhados, para seguir com a metáfora, a impaciência do povo metido nos utilitários com vidros cobertos de adesivo “Eu freio para animais”, a estridência da buzina do carro de luxo, o enxameado de motos, as dezenas de Onix de aplicativo esperando sua vez de passar. Nas redes, o governador, sereno mas enfático, anunciando em live uma força-tarefa interinstitucional, mobilizando de uma vez governo e iniciativa privada, lançando edital e anunciando suspensão das dívidas de quem se achar paralisado no trânsito/mar, se solidarizando com a tripulação e rogando ao povo cearense para que tenha esperança de que o carro/navio será fin...

O triste adeus a Cid Gomes (OP, 2014)

 É com um banzo indisfarçável que o alencarino vê aproximar-se o fim da era Cid Gomes. Nunca antes na história do Ceará um gestor concluiu oito anos de governança colecionando uma lista interminável de episódios cujo denominador comum é a fanfarronice e a absoluta falta de pudor. Em dois mandatos consecutivos, período no qual o cearense redefiniu os conceitos de estripulia, Cid flertou com o abismo ao dar uma tainha do capô de um jipe e deixou a vergonha de lado ao saltar de tirolesa no Cocó. Sucessor no trono estadual, Camilo Santana terá dificuldades para ombrear os trabalhos do tutor. Terá coragem? Sobrará desenvoltura? Do incrível voo da sogra, cartão de visitas do governador, ao bufê com bombinhas de camarão no Palácio do Abolição, passando por shows para inaugurar equipamentos públicos, a gestão do engenheiro civil prodigalizou o que há de anedótico na política. Midas circense, o Ferreira Gomes transformou a performance em capital eleitoral e, como numa peça de Zé Celso Marti...

A arte de evitar a solução definitiva

O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga. Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico deputado Feliciano evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local vê-se confrontada com um problema, a saída costumeira é recorrer ao paliativo - ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer? Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto. Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria ...

Falha do objeto

  E, antes de ir, quero contar sobre como o mesmo livro ou vários livros, quando abertos ao acaso, sempre acabam por revelar o mesmo trecho, como uma depressão em direção a qual uma esfera se dirige ao ser deixada livre sobre a superfície de uma mesa. Uma mesa aparentemente normal, mas que esconde ou disfarça essa inclinação que causa o movimento da esfera, que então rola lentamente e depois para. Do mesmo modo se dá com esse livro hipotético, com esse volume ou esse conjunto de livros que tomamos por acaso enquanto andamos pelo quarto, por exemplo, e temos necessidade de pensar na vida antes de dormir, antes de deitar, de estudar ou mesmo de ler, porque é isso que fazemos ali. E então o dividimos com displicência, e, nesse descuido, o mesmo livro ou um livro diferente abre-se exatamente no mesmo ponto do dia anterior ou de um mês atrás, como se houvesse essa depressão, essa vertigem ou falha que atrai a atenção, que faz a esfera deslizar até lá. Hoje mesmo isso aconteceu comigo, p...

A estética da demolição

  Por outro lado, Fortaleza poderia assumir de vez a demolição de arquitetura e a falta de preservação como um ativo turístico, uma marca da metrópole em meio à homogeneização da paisagem, um diferencial que a tornaria mais competitiva no mercado global dos fluxos de viagens no mundo pós-pandêmico. Assim, quando o turista do Maranhão ou do Espírito Santo ou da França chegassem à capital cearense, o guia local se encarregaria de exibir não o que temos de riqueza preservada, mas o que havia ali e agora não há mais: o vazio, o terreno baldio, o deserto planejado e executado calculadamente por autoridades e construtoras. Exemplo: aqui ficava a casa da escritora Rachel de Queiroz até o ano tal, quando foi saqueada e ruiu após muito tempo de descaso, um processo cuidadoso de abandono no qual foi empregada muita energia para negligenciar reparos e demais expedientes que um imóvel com essas características requeria. Não é um vazio bonito? Afinal, o esquecimento é obra deliberada que requer...