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O triste adeus a Cid Gomes (OP, 2014)

 É com um banzo indisfarçável que o alencarino vê aproximar-se o fim da era Cid Gomes. Nunca antes na história do Ceará um gestor concluiu oito anos de governança colecionando uma lista interminável de episódios cujo denominador comum é a fanfarronice e a absoluta falta de pudor. Em dois mandatos consecutivos, período no qual o cearense redefiniu os conceitos de estripulia, Cid flertou com o abismo ao dar uma tainha do capô de um jipe e deixou a vergonha de lado ao saltar de tirolesa no Cocó. Sucessor no trono estadual, Camilo Santana terá dificuldades para ombrear os trabalhos do tutor. Terá coragem? Sobrará desenvoltura? Do incrível voo da sogra, cartão de visitas do governador, ao bufê com bombinhas de camarão no Palácio do Abolição, passando por shows para inaugurar equipamentos públicos, a gestão do engenheiro civil prodigalizou o que há de anedótico na política. Midas circense, o Ferreira Gomes transformou a performance em capital eleitoral e, como numa peça de Zé Celso Marti...

A arte de evitar a solução definitiva

O cearense é, antes de tudo, um remendo. O nativo define-se não pelo que constrói, mas pelas gambiarras que maneja. Feitas por nós, a Torre Eiffel não passaria de um ajuntamento de bambus e cola maluca e a ponte Rio-Niterói, um conjunto mambembe de tábuas atadas umas às outras por cadarços de sapatos - as pirâmides se transformariam em barro untado com manteiga. Nosso esporte é o improviso. Evitamos a solução definitiva como o beatífico deputado Feliciano evita o doce pecado da carne. Sempre que a alma local vê-se confrontada com um problema, a saída costumeira é recorrer ao paliativo - ao alencarino, eliminar por completo um problema implica necessariamente criar uma arenga maior ainda: afinal, o que faremos quando não houver mais nada para fazer? Daí que o reparo final soe estapafúrdio e mesmo contraproducente. Interessa o gesto incompleto, a artesania do provisório, a engenharia do incerto. Em nossa aldeia, estátuas recebem demãos de tinta acobreada, assumindo contornos de alegoria ...

Falha do objeto

  E, antes de ir, quero contar sobre como o mesmo livro ou vários livros, quando abertos ao acaso, sempre acabam por revelar o mesmo trecho, como uma depressão em direção a qual uma esfera se dirige ao ser deixada livre sobre a superfície de uma mesa. Uma mesa aparentemente normal, mas que esconde ou disfarça essa inclinação que causa o movimento da esfera, que então rola lentamente e depois para. Do mesmo modo se dá com esse livro hipotético, com esse volume ou esse conjunto de livros que tomamos por acaso enquanto andamos pelo quarto, por exemplo, e temos necessidade de pensar na vida antes de dormir, antes de deitar, de estudar ou mesmo de ler, porque é isso que fazemos ali. E então o dividimos com displicência, e, nesse descuido, o mesmo livro ou um livro diferente abre-se exatamente no mesmo ponto do dia anterior ou de um mês atrás, como se houvesse essa depressão, essa vertigem ou falha que atrai a atenção, que faz a esfera deslizar até lá. Hoje mesmo isso aconteceu comigo, p...

A estética da demolição

  Por outro lado, Fortaleza poderia assumir de vez a demolição de arquitetura e a falta de preservação como um ativo turístico, uma marca da metrópole em meio à homogeneização da paisagem, um diferencial que a tornaria mais competitiva no mercado global dos fluxos de viagens no mundo pós-pandêmico. Assim, quando o turista do Maranhão ou do Espírito Santo ou da França chegassem à capital cearense, o guia local se encarregaria de exibir não o que temos de riqueza preservada, mas o que havia ali e agora não há mais: o vazio, o terreno baldio, o deserto planejado e executado calculadamente por autoridades e construtoras. Exemplo: aqui ficava a casa da escritora Rachel de Queiroz até o ano tal, quando foi saqueada e ruiu após muito tempo de descaso, um processo cuidadoso de abandono no qual foi empregada muita energia para negligenciar reparos e demais expedientes que um imóvel com essas características requeria. Não é um vazio bonito? Afinal, o esquecimento é obra deliberada que requer...

Faz de conta que Fortaleza é uma cidade

Faz de conta que Fortaleza é uma cidade cujo patrimônio não se preserva, mas se dilapida dia a dia, num rigoroso programa de demolição da memória patrocinado e concorrido, bancado por farmácias e construtoras, empresários cujos sonhos são habitados por torres espichadas com nomes de resorts em Dubai ou Miami. Ora, veja-se aquela casinha, por exemplo, um dia pertenceu a família abastada, tem menos de 100 anos, como quase tudo na cidade, logo é forte candidata não à proteção, mas ao saque. De imediato pululam as teses segundo as quais nenhuma construção tem valor histórico com idade inferior a um século, sem ter sido morada de gente não apenas importante, mas também graúda e de senso histórico, de relevância para o andamento da vida na metrópole etc. O leque de imóveis preserváveis, assim, reduz-se mais e mais, porque se contam nos dedos as edificações com essas características: antiguidade, relevância histórica e memorialística, exemplaridade de uma arquitetura cujo rastro está em vias ...

Jamais entregue

  Estou mesmerizado há horas diante da foto do navio encalhado, do seu nome, Ever Given, em contraste com sua condição, um artefato do tamanho de um megaedifício atravessado num canal cujas dimensões o impedem de proceder a qualquer movimento que não seja ir em frente. Mas o que houve com a embarcação, o que se passou com o comandante ou capitão, seja lá o nome que se dê a quem chefia esse tipo de transporte, de tal modo que considerou e de fato manobrou, atravancando as toneladas e toneladas, optando por um ângulo quando, no máximo, estaria em condições de desenhar uma linha reta? Gostaria de aceitar que a imperícia explica tudo, que uma noite mal dormida ou qualquer outra justificativa técnica ou humana ajudassem a fazer entender por que cargas d’água o piloto, de certo experimentado, houve por bem encalhar um animal metálico com 400 metros de comprimento num dos trechos marítimos de maior fluxo do comércio global. Porque simplesmente não entendo, e não aceito não entender, quer ...

Carta ao primo

Embora tenha se passado uma semana, só agora pude escrever, não por falta de tempo, mas de coragem mesmo, uma covardia que me impedia de olhar o celular e ler as mensagens, de ligar para a família e oferecer conforto. Falar com o tio, com a tia, com os outros primos, perguntar se estavam bem, estar como que um porto-seguro, mas não sou porto-seguro para ninguém neste momento, a morte por toda a parte fazendo o cotidiano balançar, esboroando qualquer hipótese de normalidade. Demorei a telefonar porque sabia que, no instante em que o fizesse, teria de aceitar essa morte, e não sabia se estaria pronto para isso, para que me dissessem que o primo havia ido embora sem que o visse depois de tanto tempo, que a pandemia o tinha levado, que o menino que minha mãe havia segurado nos braços era hoje um desses números que acompanho todo dia por dever de ofício, numa escalada macabra. Meu primo era um desses, mas era também sangue do meu sangue. As brincadeiras de infância, o jogo de bola, a praia,...