Estou mesmerizado há horas diante da foto do navio encalhado, do seu nome, Ever Given, em contraste com sua condição, um artefato do tamanho de um megaedifício atravessado num canal cujas dimensões o impedem de proceder a qualquer movimento que não seja ir em frente.
Mas o que houve com a embarcação, o que se passou com o comandante ou capitão, seja lá o nome que se dê a quem chefia esse tipo de transporte, de tal modo que considerou e de fato manobrou, atravancando as toneladas e toneladas, optando por um ângulo quando, no máximo, estaria em condições de desenhar uma linha reta?
Gostaria de aceitar que a imperícia explica tudo, que uma noite mal dormida ou qualquer outra justificativa técnica ou humana ajudassem a fazer entender por que cargas d’água o piloto, de certo experimentado, houve por bem encalhar um animal metálico com 400 metros de comprimento num dos trechos marítimos de maior fluxo do comércio global.
Porque simplesmente não entendo, e não aceito não entender, quer dizer, não posso conviver com a ideia de que há um mistério por trás desse equívoco, se se trata mesmo de erro. Erro humano, erro maquinal, erro do destino; afinal, não era o dia dele, por um alinhamento mal distribuído dos astros talvez o melhor não fosse ter saído a capitanear o Ever Given, mas ficar em casa preparando café e vendo séries antigas, alisando os pelos do gato e sentindo que a vida é isso mesmo.
Mas não foi o que aconteceu. Agora mesmo há uma fila de barcos à espera de que o canal seja desobstruído, coisa não prevista para os próximos dias, carregamentos empilhados, dinheiro perdido, fluxo interrompido, negócios extraviados, o capitalismo em risco porque, num dia sem graça, um homem decidiu guinar o casco um tantinho mais à esquerda ou mais à direita, seguindo o instinto que lhe dizia que, sim, era possível fazer, bastava proceder com o máximo de cuidado.
Mas não era, e agora assistimos entre suspensos e divertidos a uma operação não de resgate, porque não há vítimas nem vidas em risco, salvo se dentro daquelas caixas de ferro houver objeto sem o qual alguém, em alguma parte do mundo, estiver em vias de morrer.
Fora isso, é um teatro do absurdo acompanhar hora a hora, todos os esforços de pronto insuficientes, qualquer gesto incapaz de mover o navio, que se prostrou como montanha e de lá não pretende arredar pé.
A inutilidade de uma escavadeira cujo braço mecânico cava e cava, sem sucesso, em sucessivas tentativas frustradas de tornar mais funda a margem e de lá ajudar a desengastar o calmo e agora conformado Ever Given.
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